Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de janeiro, 2019

Como é que eu troco de canal? #23

Todo mundo apressado para tomar banho, por a roupa de domingo e encontrar um lugar vago na janela do carro em dia de ir ao shopping . O pai segura o queixo no volante com o motor ligado, a mulher entra na porta ao lado, esbaforida, porque a mãe ficou horas  e horas escolhendo o penteado e saiu com o cabelo preso. Continuo a seguir com o olhar a chuva que escorre aos pingos pela brecha da calha que molha meus braços. O carro acelera, passa uma, duas, três ruas, vira à esquerda, segue adiante, torna à direita, agora tem que parar no semáforo. Há garotos vendendo bala ali, mas o pai acelera sem dar chance para o garoto dizer que era só três por cinco. Lembro de mais cedo na praia, quando outro garoto com aquele mas  sem qualquer semelhança estética com o mesmo passara vendendo bolsas. "Olha, que legal. desde pequeno já tá trabalhando. Tá de parabéns, hein!" o garoto ouve acanhado. "Quanto é a bolsa?" "É 30, senhora." "Faz por 20?" Ele não quer o...

Envelhecendo na velha cidade #22

Fazer aniversário é olhar para o caminho do meio entre o que foi e o que pode não vir. É se dar conta da vida que seja por algumas horas de um dia por ano. Fazer o balanço se no dia de hoje, quando mais um ano se acrescenta na sua idade, você é quem achava que seria.  Mas o que eu pensava que seria? Talvez eu pensasse que estaria sendo cientista e desvendando um método de filtro para escapamento de carros como na redação, que envergonhado, tive que ouvir minha professora ler na frente todos, naquela reunião de pais na quarta série. Ou quando dizia que seria advogado aos onze, presidente aos doze e engenheiro civil aos quatorze. Mas, o que me faz puxar os lábios hoje é lembrar que desses tantos outros, há o mesmo eu que queria aos nove em diante era roubar o emprego da dona Geisla na biblioteca municipal, quando dizia muitas vezes para ela que o que eu queria era trabalhar naquela biblioteca gigante com as estantes espalhadas por dois cômodos pequenos. "Quando eu crescer quero t...

Perdas e Danos #21

Outro dia olhava um caderninho de anotações e de lá saía ideias de todos para todos os gostos, umas escritas há semanas, outras eram de anos atrás. Algumas pareciam que não era minhas e talvez não fosse mesmo. Tinha uma lista de nomes de mulheres, quase sempre fruto de amores inventados, terríveis. Eram personagens de diversos meios lugares do meio artístico que me fizera querer esconder a vontade de provar um pouco do veneno de cada uma. Era Irene Adler, que na infância me fizera pasmo como o Sherlock naquele escândalo da Boêmia. A mim, parecia sem sentido o detetive mais inteligente do mundo ficar perdido por uma mulher, ou sua interpretação não acredita que a peça que ela prega nele seja metáfora da líbido? Depois veio Mia Wallace no nonsense de Pulp Fiction que me fez saltar os olhos para a sua franja postiça muito sensual. A ela adrenalina, eu fiquei com serotonina. Em seguida, vem Anna Barton com sua sedução de matar. Nos livros tem aquelas que não tem chance, mas deixam...

O observador de pássaros #20

Aquela lembrança nunca mais saiu de sua cabeça, acompanhando-o por toda a sua vida e o perseguindo para onde quer que ele tentasse se esconder. E ele tentou. Uma semana depois de encontrar seu pai estirado no chão do quintal de casa, vítima de um infarto fulminante, o jovem não conseguiria mais olhar a sua volta, sem que seus demônios o lembrasse a todo instante sua recusa a vida monótona que a família levava, e além disso, os constantes embates que procurava enfrentar com o pai, por estar alheio a tudo e observar a morte chegar com tranquilidade e até mesmo, impaciência. Todos os dias, por horas e horas, o velho se encontrava no quintal, em cima de uma gasta cadeira de madeira e com uma das mãos apoiada em uma bengala, se limitando a olhar para todos aqueles canários amarelos enfileirados em uma série de gaiolas no muro que circundava a casa. Quando morreu estava lá, observando aquelas aves que como ele já tinham seus destinos traçados e em determinados horários do dia, soltavam al...

Diante da liberdade #19

Em uma manhã, quando F. acordou de sonhos perturbados, encontrou-se transformando em um asqueroso inseto. Sua casca continuava a mesma de antes no espelho. Por dentro, sentia-se cada vez mais agitado e propenso a se afogar nas sujeiras da rua. Se afastou das músicas e livros e seus amigos já não reconhecia. Sua boca rejeitava o gosto da comida que lhe serviam, com o cheiro que provocava náusea. Falante eloquente, agora não se ouvia palavra, só grunhidos escapavam por dentre os pequenos buracos dos dentes carcomidos. Os olhos já não carregavam a suavidade de outrora e alucinado, corria em todas as direções sem nunca alcançar nenhuma. Seus ossos ficavam a cada dia maiores e pontiagudos, ameaçadores para a aranha que preferia fugir para as frestas do forro a encará-lo. No dia 1, teve outros pesadelos como no primeiro dia. Abriu os olhos pelo sons de sua boca, mas não era  um grunhido, era um grito de horror claro e seco.  Na mesma noite, por volta das dez, fortes murros...