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O observador de pássaros #20

Aquela lembrança nunca mais saiu de sua cabeça, acompanhando-o por toda a sua vida e o perseguindo para onde quer que ele tentasse se esconder. E ele tentou. Uma semana depois de encontrar seu pai estirado no chão do quintal de casa, vítima de um infarto fulminante, o jovem não conseguiria mais olhar a sua volta, sem que seus demônios o lembrasse a todo instante sua recusa a vida monótona que a família levava, e além disso, os constantes embates que procurava enfrentar com o pai, por estar alheio a tudo e observar a morte chegar com tranquilidade e até mesmo, impaciência.
Todos os dias, por horas e horas, o velho se encontrava no quintal, em cima de uma gasta cadeira de madeira e com uma das mãos apoiada em uma bengala, se limitando a olhar para todos aqueles canários amarelos enfileirados em uma série de gaiolas no muro que circundava a casa.
Quando morreu estava lá, observando aquelas aves que como ele já tinham seus destinos traçados e em determinados horários do dia, soltavam alguns sons que poderiam ser músicas fúnebres para si e também para o velho que os observava e os alimentava há anos. Mas, esse destino não pertencia a José Luiz, que desde a infância não seguiu os passos de seus irmãos mais velhos, ao negar-se a ir trabalhar no campo, pois sua vida não seria igual a de seus pais e irmãos, que nasceram e morreriam ali como todos daquela família.
Tudo isso novamente passava pelas memórias de José Luiz e lembrava exatamente do choro de sua mãe quando começou a empurrar todos de sua frente para entrar no carro que o levaria para a agitação da metrópole. A mãe segurou no seu ombro esquerdo e lhe disse com voz entrecortada pelas lágrimas, de que não se esquecesse de sua família, pois era a pior solidão que alguém pode sofrer. Ele assentiu apressado e prometeu enviar correspondências quando pudesse, pois, precisaria de muito trabalho para conquistar o sucesso que almejava.
Após vinte anos, José Luiz já era um sargento da polícia e casara-se com uma jovem jornalista que um dia acabava de ser assaltada em frente a pousada que frequentava e estando por ali no momento, o recém oficial conseguiu capturar o indivíduo e o coração da moça de olhos claros e cabelos longos cor de mel.
Se encontraram algumas vezes nos meses seguintes e logo se casaram. Ele definitivamente não sabia como acontecera, mas desde a primeira vez que a viu, sabia que não conseguiria ficar por muito tempo sem vê-la dali em diante. E não conseguiu.
Não conseguiu também dormir naquela noite em que com a cabeça encostada no travesseiro ricochetear as lembranças de um pesadelo nostálgico que o lembrava do seu pai caído, já sem vida no chão de terra do quintal e o cantar dos pássaros que agora gritava num som estremecedor, que o impediu que voltasse a fechar os olhos naquela e nas noites anteriores.
Calçou as botas e decidiu ir à sacada para esquecer aquela memória que já pensara não fazer mais parte de si há anos e que agora, voltara num lapso, como um raio e atingiu em cheio o peito do homem, que por muito tempo deixara de ser José Luiz e passara a ser o Sargento Pereira.
No início da manhã o sol aparecia para ele sem brilho ou calor. Havia um grande aperto em sua garganta e desceu as escadas para evitar contato com as filhas que estavam para acordar para ir à escola e a esposa que já estava no chuveiro. Entrou em sua biblioteca, mas não abriu seu baú de medalhas ou algum de seus romances policiais que entupiam a sala e reduzia o espaço onde ficava sua escrivaninha e uma cadeira pequena. Tirou de gaveta uma pequena garrafa de conhaque e mergulhou seu líquido num copo seboso, o único que esquecera ali junto com a garrafa e um charuto já carcomido pelas baratas. Observou o prédio situado na extremidade da avenida, outrora imponente e frequentado, servia agora de morada para diversos espécies de animais, como aqueles corvos que o encarava num instante, mas logo alçavam voo e deixaram-no só com suas memórias.
Não se sabe como começou, mas logo o sargento já angustiado pela insônia, passava os dias e as noites na pequena sala que outrora fora um depósito de livros, e que agora se destinava a abrigar aquele homem e todos os intermináveis escritos que o mesmo passara a escrever, além de cada vez mais garrafas de conhaque e charutos vagabundos, que deixava o lugar com um aspecto de botequim. Ele pintava nas folhas sempre o mesmo quadro com sua caligrafia que vez ou outra se transmutava em rabiscos incompreensíveis. Mas mesmo assim, dia após dia ele narrava toda sua biografia, desde a morte de seu pai até o dia em que perdeu o brilho no olhar e passou a não sair mais de casa e nem criar qualquer contato com suas filhas e sua esposa. Ora, suas memórias remoíam em sua cabeça e tudo aquilo o que ela podia fazer para mudar seu destino, era inverter a história ao menos na caligrafia. Os dias pareciam séculos e se pareciam uns com os outros. Um dia, andando na sala de estar viu muitos envelopes, principalmente próximos do pequeno tapete de boas-vindas que ficava pouco atrás da porta de entrada da casa. Alguns muito empoeirados e já carcomidos pelas traças. Andou pelos cômodos da casa, buscando encontrar suas filhas ou qualquer outro sinal de vida. Tudo em completo silêncio. Numa euforia abriu todos os cômodos de sua casa, armários e até o sótão e deu de cara com a solidão. Abriu a porta do quarto e resolveu procurar alguma luz naquele emaranhado de escuridão. Encontrou em cima da cama um pequeno bilhete, já amarelo pelo tempo. Era um envelope grande e grosso, que ao abrir, o encarou por longos minutos antes de pousar novamente no colchão. Era o pedido de divórcio de sua esposa, que pelo cheiro de mofo estaca por ali há tanto tempo, que nem se podia especular o quanto.
Do mesmo modo, não sabia como chegara ali, por muito tempo sem se dar da conta de nada a sua volta e simplesmente ficar sentado em sua escrivaninha olhando para o céu acinzentado.
Naquele instante não correu do destino que o alcançara. E simplesmente voltou a sua rotineira vida de simplesmente sentar à escrivaninha esperando o desfecho de sua vida. Seu coração ainda pulava e o fazia pensar sobre possibilidades de fugir dali, mas isso não se passava de um sopro que vinha em alguns raros momentos e desaparecia logo depois. Ainda na mesa lembrou das palavras de sua mãe sobre a solidão, mas já não havia saída, decidira alimentar aqueles pássaros negros que novamente o observava já sem vida por alguns dias e a cada dia rondavam mais próximo à janela daquele homem. Até que num ímpeto romperam na biblioteca e saborearam o velho homem, que dessa vez, aceitou o destino que lhe gelou o corpo e alimentou os corvos que o observavam do alto do prédio.

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