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Mostrando postagens de outubro, 2019

Ligações perdidas #62

Era uma noite meio parada quando a gente se esbarrou na mercearia. Ela vinha com um vinho na mão e a risada de algumas amigas. Eu tinha colocado uma touca e sai de bermudas e chinelos para comprar outro miojo de legumes e umas cervejas na promoção. Na hora do caixa, ela na frente sem me ver, contava uma história sobre o dia em que ela tinha ido no parque de diversões e tinha varado a rede da cama elástica e caído do outro lado, as amigas riam agora com mais força e gesticulando que iam cair no chão, não acreditavam que aquilo tinha acontecido. Ela olhava para a frente, quando se lembrou de que tinha esquecido o manjericão, virou de uma vez e puff, meu miojo voou para o outro lado do balcão e as cervejas se esparramaram pelo chão. Ela se assustou e apertou as duas mãos na face morena e com a voz mais doce me pediu "desculpa", eu olhei pro chão e sorri dizendo que não tinha importância, aquilo tudo era barato e que tinha valido por ouvir a sua história sobre o parque. Ela fico...

Take it easy, darling #61

Ter valor é útil e tem de ser. O  tempo é curto e sempre tem muito o que fazer. O objetivo que não chega alimenta a esperança que a dor de agora vai passar, um dia passa, mas passa tanta coisa. No século XXI (não vivi nos outros), cada indivíduo é neoclássico, não, não é que todos leem Bentham ou Jevons, ou acreditam piamente na lei dos mercados. É que tudo tem um fim determinado, que se determina para além daquele fim. As madrugadas de trabalho foram feitas para que seja possível o passeio de almoço no domingo, o espinafre que a menina faz careta pra engolir previne um sem fim de doenças, vi num programa matutino. As horas da missa e de terço têm por objetivo pleitear um lugar ao céu.  A gente vive pra viver um amanhã que nunca vem. Deixar o relógio em casa ou esquecer a agenda por querer é se fazer sonso no mundo das multi-tudo (tarefas, telas, relações...). Assim, o globo gira mais desengonçado é verdade, mas ao mesmo tempo mais fluido, sem propósito.  Beijar o ...

Carta de amor descabelada #60

Escrevo essas linhas iniciais, sem saber o que te dizer, depois de tanto tempo, o que sobrou de nosso amor? Eu cortei o último fio que nos unia, mas como dói! Sempre fui contido em expressar meus sentimentos por você, mesmo quando todos nos apontávamos como o casal mais belo. Sempre diziam: "Vocês dois ficam tão bem juntos!" ou hora outra apontavam pra gente na multidão e sacramentavam o nosso laço, éramos como vinho e cool jazz numa noite sem lua. Eu sempre carrancudo, ignorava os elogios e seguia satisfeito por dentro, mas sem uma palavra de carinho dita em voz alta na frente do espelho.  Como era refrescantes nossos banhos no verão, enquanto a água escorria por você até me molhar e expelir para o ralo o calor a queimar o forro do nosso pequeno banheiro. A água quente amaciava nosso corpo no inverno, depois deitávamos em nossa cama, pensando em tanto daquilo que a gente nunca iria ser. Éramos felizes e sabíamos. O vento gelado persegue minha nuca mesmo nas tardes mais qu...

Crônica de uma morte anunciada #59

Ele andava sempre fugindo aos encontros com ela. Quando criança, tinha uns cinco anos, primeiro dia na escola, a mãe besuntou seu rosto de protetor solar enquanto ele se irritava com a a massa branca oleosa na pele. Na hora do portão, viu alguns amigos chorando sobre os braços de mães aflitas que acompanhavam os meninos na sala, como aquilo era engraçado, como tudo! Mas aí depois de todos sentarem em roda ela contou a história da chapeuzinho vermelho e que o lobo mau havia morrido para o caçador. Os outros meninos pularam com o punho em riste, as meninas suspiraram aliviadas. Ele olhou para a mão, mas fingiu sorrir, não sabia o que era aquela palavra, morte.  Encabulado, esperou sua mãe voltar para buscar aquele dia, ainda meio cabisbaixo, a professora chamou a mãe para um canto e contou aos cochichos que ele tava meio amuado e que isso devia ser coisa da sopa de fubá do recreio. A mãe se aproximou e ele apertou seus dedos miúdos na mão grande e pintada de rubro nas unhas. "Mãe...

E se? #58

E se a facada tivesse acertado em cheio? Perfurado a garganta e espirrado sangue em meio ao verde e amarelo da multidão? E se o policial militar tivesse fingindo que não viu o suspeito com a faca na mão e desse um tiro para o alto para espantar a multidão?  E se o cirurgião manejasse o bisturi com cuidado para acabar de abrir a carótida e alegasse erro médico, pediria três semanas de folga e ia com a  família para o caribe? E se a imprensa negasse cobertura, fingisse que estava ocupada desvendando os estacionamentos preferidos por artistas que já não tocam mais nas rádios?  E se o coveiro arrancasse a terra com a mesma indiferença de toda a manhã? E se  o céu o repudiasse e o inferno o ignorasse? E se o dono da banca continuasse a vender mais um chip em promoção, o delegado bebesse mais uma dose de uísque já que saiu mais cedo do serviço, o filho continuasse a tomar sorvete antes do jantar? E se o patrão a cobrar mais do empregado e o outro fingisse que trabalhava...