Pular para o conteúdo principal

Ligações perdidas #62

Era uma noite meio parada quando a gente se esbarrou na mercearia. Ela vinha com um vinho na mão e a risada de algumas amigas. Eu tinha colocado uma touca e sai de bermudas e chinelos para comprar outro miojo de legumes e umas cervejas na promoção. Na hora do caixa, ela na frente sem me ver, contava uma história sobre o dia em que ela tinha ido no parque de diversões e tinha varado a rede da cama elástica e caído do outro lado, as amigas riam agora com mais força e gesticulando que iam cair no chão, não acreditavam que aquilo tinha acontecido. Ela olhava para a frente, quando se lembrou de que tinha esquecido o manjericão, virou de uma vez e puff, meu miojo voou para o outro lado do balcão e as cervejas se esparramaram pelo chão. Ela se assustou e apertou as duas mãos na face morena e com a voz mais doce me pediu "desculpa", eu olhei pro chão e sorri dizendo que não tinha importância, aquilo tudo era barato e que tinha valido por ouvir a sua história sobre o parque. Ela ficou mais bronzeada de vergonha, mas eu coloquei a mão nos seus ombros. "Essa era a melhor história que eu tinha escutado há meses". Ela olhou para minha mão e eu fiquei meio encabulado. As amigas dela queriam saber o que aconteceu, mas ela apontou para o manjericão e enquanto elas iam buscar as folhas verdes para o molho,  me enlaçou com o vinho e colou seus lábios nos meus. 
Flor era seu nome. Fui saber disso depois de uns dias, quando encontrei sem querer sua foto de perfil numa rede social. Seguimos de volta a nossa conversa por ali, mas ela era muito ocupada, trabalhava e estudava, mas de vez em quando encontrávamos para alguns beijos esporádicos na pracinha sempre às quintas. Como tudo aquilo era adolescente e diferente dos outros encontros! Era engraçado porque ela ficava com outras pessoas, e eu também, mas ali não. Atrás do coreto, como duas crianças longe dos olhos dos pais e perto dos balanços era só a gente. Mas, um dia acabou. Ela deixou de ir na pracinha na quinta. Não visualizava minhas mensagens, as ligações sempre caiam na caixa postal. Um dia voltei às redes sociais para encontrá-la, nenhum sinal. Tentei encontrar as amigas dela, mas esqueci que não havia perguntado o nome. De tempos em tempos voltava à mercearia sempre à noite e de chinelos para ver se a gente se esbarrava de novo. Nem sinal.
O tempo passou, arrumei um emprego em outra cidade. No dia marcado, levei a mala na escola e caminhei até um ponto de ônibus. Comecei a mexer no celular até o ônibus chegar. Coloquei a mala no bagageiro e entreguei a passagem sem olhar para o cobrador. Eu era o último a entrar, ele já estava cansado. Me pediu a identidade. Abri a carteira e estiquei a mão olhando para o sujeito. Nisso, vinha ela há alguns passos com uma garrafa na mão e de óculos escuros. Todos já estavam lá dentro e a porta prestes a fechar, corri pois não poderia ir embora sem aquela pergunta:
"O que aconteceu? Por que você sumiu?"
Ela demorou alguns segundos para me reconhecer e com um sorriso engraçado bebeu um pouco do keep coller citrus antes de tirar o celular da pequena bolsa à tiracolo.
"Você acredita que eu fui roubada?"

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O ser e a estupidez

 Não consigo me reconhecer. Cumpro a cartilha às avessas de tudo aquilo que forjei ser meu domínio, minha índole. Lembro que até pouco tempo, lamentava profundamente ter de me relacionar com conversas banais e carinhos avulsos por algumas noites, para no outro dia, amargar uma ressaca de não resistir em relações da carne. Como a música, a literatura, o cinema, a teoria crítica não me bastava?  Meus relacionamentos mais duradouros sempre operaram na lógica de flerte e conquista, para desaguar em contato sexual apenas uma ou duas vezes por mês. Nesse meio tempo, mantinha um contato frio, era meu jeito, nunca consegui ser romântico e a humilhação pública do amor me nauseava. Não havia maiores sentimentos que passassem a figura do cômodo, de não ser um completo párea, de agradar alguém no mundo e produzir um parco desejo nesse outrem. Sempre coloquei minhas aspirações primeiro, sendo elas altas, nobres e lúcidas ou inúteis, apenas para comprovar que só eu me governo e nenhuma infl...

Carta de amor descabelada #60

Escrevo essas linhas iniciais, sem saber o que te dizer, depois de tanto tempo, o que sobrou de nosso amor? Eu cortei o último fio que nos unia, mas como dói! Sempre fui contido em expressar meus sentimentos por você, mesmo quando todos nos apontávamos como o casal mais belo. Sempre diziam: "Vocês dois ficam tão bem juntos!" ou hora outra apontavam pra gente na multidão e sacramentavam o nosso laço, éramos como vinho e cool jazz numa noite sem lua. Eu sempre carrancudo, ignorava os elogios e seguia satisfeito por dentro, mas sem uma palavra de carinho dita em voz alta na frente do espelho.  Como era refrescantes nossos banhos no verão, enquanto a água escorria por você até me molhar e expelir para o ralo o calor a queimar o forro do nosso pequeno banheiro. A água quente amaciava nosso corpo no inverno, depois deitávamos em nossa cama, pensando em tanto daquilo que a gente nunca iria ser. Éramos felizes e sabíamos. O vento gelado persegue minha nuca mesmo nas tardes mais qu...

Presente do indicativo

Fomos muitos, mas em que ponto deixamos de ser esses tantos para nos tornamos outros. Ou sempre os mesmos num círculo imaginário. Um acorde musical te guia para lembranças de um passado recente. Onde o ontem parecia melhor que o amanhã e assim por diante. Postes iluminados virados para o oeste, para o pôr-do-sol, para o que se passou. Os fins tornam-se objetos de valores mais altos que os começos. O fim carrega consigo o caminhar a contra ritmo em fatos já passados. Pelo menos conhece-se o inimigo. Mas e o agora? O caminho para onde o nariz aponta é tortuoso e vário. Pensar que não se pode ser aquela pessoa que tanto se sonhou pode significar a apoteose da consciência. Não poderei ser o homem que primeiro pisou em Marte. Ufa! A marcha às vezes é lenta como se sempre houvesse tempo e por vezes acelerada pelo pavor do nunca mais. As métricas estão em revolução e não há possibilidade de fazer tudo, mas tem tantas coisas e tantos que se queria ser... Quantas batalhas internas deve-se lutar...