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Mostrando postagens de fevereiro, 2019

Pequenos pedaços de algo seco que queima facilmente #27

Droga!  Foi o que o atendente de camisa social de manga curta e gravata listrada me ouviu dizer logo após eu saber que meu ônibus atrasaria cerca de 45 a 60 minutos. Praguejava contra a teoria do caos, quando me contentava em sentar num daqueles bancos de cimento curvados com alguma propaganda local que não quis prestar atenção. Com a ponta dos pés empurrando o chão para baixo num ritmo sincronizado, via passar pelos meus olhos uma série de passos apressados e pedintes sossegados que lotavam o terminal rodoviário.  Ainda desnorteado com a parafernália de vozes abafadas e odores de embreagens queimadas, saquei o celular e a vi, do outro lado, com os olhos sorrindo e os lábios querendo me ver. Apertei o coração e a conexão foi instantânea. Por entre as franjas do cabelo ruivo, havia a palavra Ateia marcada no espaço da biografia. O que será que ela dizer quando eu me dissesse agnóstico, mas era religioso? "É sério que você tem religião?" Ela poderia disparar com desdém. Nã...

Demônios que a garoa não leva #26

A vi pela primeira vez pela televisão. Estava ali, perto do mato e do barulho do riacho e você apareceu num daqueles programas de domingo. Nunca mais consegui te esquecer. Naquela época, namorava com Mariana, Mariana de Cambuquira. É engraçado porque Cambuquira era seu sobrenome e também de onde vinha. Tinha olhos cor de âmbar e a pele morena queimada do sol do interior. Seus cabelos eram encaracolados e castanhos, com as pontas amareladas. Era de poucas palavras e gostávamos de estarmos à sós, olhando as vacas do Seu João Ribeiro e imaginando o sonho por detrás das montanhas. Seu beijo era de água doce do riacho. Seu cheiro era a mescla do doce da acerola e do frescor do limão, das árvores no quintal de casa. Pela tarde gostávamos de passear pelas ruas de pedra e sentar no passeio da pensão da Dona Terezinha e tomar sorvete no coreto e ir à missa aos domingos. Teu silêncio era o “eu te amo” mais alto que já ouvi, quando olhava para as estrelas enfeitando o universo do seu olhar. Tudo...

O estranho no ninho #25

O pai segurava entre os dedos engordurados a coxa quase inteira já dentro da boca. A filha cortava o resto do frango em pedaços para o jantar. A mãe colocava mais um pouco de arroz no prato do pai. Batidas no portão. Silêncio.  Talvez fosse o vento ou um cachorro que esbarrara a cabeça no metal procurando de onde vinha o cheiro de carne morta assada, a mãe pensou. Todos concordaram com um leve abaixar dos olhos, a coxa de frango segurava a boca do pai aberta, estática. Novas batidas, dessa vez o filho chamara os pais pelo nome. Olhos enormes e um sorriso de canto lhe abriram o portão. Entrou, a irmã viera com um prato de arroz e feijão e o pedaço de frango que o pai segurava entre dentes. O homem mais velho levantou e pediu para que ele se sentasse na ponta da mesa. Desde a noite anterior o visitante não comera nada além de uma maçã murcha que carregava consigo na bolsa a tiracolo. Toda a família olhava de soslaio para o estranho na mesa. Depois de se satisfazer e limpar a boc...

Leila #24

A guitarra de B.B. King gemia abafada pelos meus no terraço da casa do Jorge. O suor salgado caia de sua testa quando ele a encostava em meu queixo, a gente acompanhava o ritmo da música, num blues do amor, calmo e constante. Eu apertava as minhas unhas vermelhas em sua perna café-com-leite, mais café do que leite, enquanto ele apertava meu peito leite puro no seu.  Seus olhos negros me devoravam, enquanto a guitarra elétrica persistia gemendo lá embaixo, na frente de jovens trocando salivas em línguas cruzadas e cigarros de maconha. A viagem dos pais de Jorge para a serra naquele fim de semana foi a deixa para armamos a festa da galera do cursinho e comemorar com mais uma festa a despedida de nossa turma. Jorge, era o líder de uma banda de rock e tocava guitarra, Max ficava com o baixo e o Goulart era o cara da bateria. Eu, cantava em algumas músicas no palco, enquanto eu não estava cantarolando as mesmas na cadeira velha da garagem.  Amávamos os Beatles e os Rolling Sto...