Pular para o conteúdo principal

Pequenos pedaços de algo seco que queima facilmente #27

Droga! Foi o que o atendente de camisa social de manga curta e gravata listrada me ouviu dizer logo após eu saber que meu ônibus atrasaria cerca de 45 a 60 minutos. Praguejava contra a teoria do caos, quando me contentava em sentar num daqueles bancos de cimento curvados com alguma propaganda local que não quis prestar atenção. Com a ponta dos pés empurrando o chão para baixo num ritmo sincronizado, via passar pelos meus olhos uma série de passos apressados e pedintes sossegados que lotavam o terminal rodoviário. 
Ainda desnorteado com a parafernália de vozes abafadas e odores de embreagens queimadas, saquei o celular e a vi, do outro lado, com os olhos sorrindo e os lábios querendo me ver. Apertei o coração e a conexão foi instantânea.
Por entre as franjas do cabelo ruivo, havia a palavra Ateia marcada no espaço da biografia. O que será que ela dizer quando eu me dissesse agnóstico, mas era religioso? "É sério que você tem religião?" Ela poderia disparar com desdém. Não da forma convencional, mas que a devoção pelo meu time assumia um papel religioso e por isso não poderíamos sair nas noites de quarta, que poderia em alguns casos virar quinta e nas tardes de domingo, às vezes adiantada para sábado.  São os dias de culto.
 A convidaria para assistir um filme na minha casa, eu colocaria o terceiro  d"O poderoso chefão" aquele que ela nunca viu, mas tinha vontade... Ia ficar pra próxima, porque o último filme tinha feito para ser pretexto para casais se beijarem mais rapidamente.
 No outro dia, ela chegaria dizendo que queria escutar música. Eu abriria minha lata de CD's e ficaria entre "London Calling" do Clash e "Strange Days"do Doors, ela iria me chamar de velho e com a conta do Spotify pareada com o aparelho de som, me daria a opção entre Mumford & Sons ou Killers. Eu reclamaria mas não conseguiria parar de sorrir vendo ela cantando todas aquelas músicas com a vassoura de microfone. Ela pintaria um quadro conceitual que eu precisaria de anos para entender e talvez nunca conseguisse, enquanto mostrava para ela a obra-prima da MPB. Ela leria os meus livros e questionaria meus personagens, do porque o meu protagonista, que para ela sempre era eu, naquele livro deixara sua esposa, tentando entender se aquilo era um sinal. Em sua peça, ela se faria Colombina e eu Pierrot e Arlequim numa ligação causal entre bobo e apaixonado.
Por fim, planejaríamos nossas viagens de férias. Ela queria conhecer Paris, eu gostaria que fosse Budapeste e acabaríamos indo mesmo para Montevidéu. Na filosofia, ela me ensinaria conceitos propostos por Simone de Beauvoir enquanto eu não pararia de repetir sobre os existencialistas.
Quase sem querer, teríamos um filho, eu iria querer chamá-lo de Sócrates, pelo jogador e filósofo, ela preferiria Antônio, por causa do pai. Ela ganharia, ganharia como todas as outras discussões que viriam a seguir. Quando nosso cachorro chegasse, eu iria correr para escolher o nome na frente, "O cachorro se chamará Chopp" meus dedos digitavam. Quando olho de novo para a tela, o jogo se desfez, levando consigo todas as promessas que poderiam ter sido feitas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O ser e a estupidez

 Não consigo me reconhecer. Cumpro a cartilha às avessas de tudo aquilo que forjei ser meu domínio, minha índole. Lembro que até pouco tempo, lamentava profundamente ter de me relacionar com conversas banais e carinhos avulsos por algumas noites, para no outro dia, amargar uma ressaca de não resistir em relações da carne. Como a música, a literatura, o cinema, a teoria crítica não me bastava?  Meus relacionamentos mais duradouros sempre operaram na lógica de flerte e conquista, para desaguar em contato sexual apenas uma ou duas vezes por mês. Nesse meio tempo, mantinha um contato frio, era meu jeito, nunca consegui ser romântico e a humilhação pública do amor me nauseava. Não havia maiores sentimentos que passassem a figura do cômodo, de não ser um completo párea, de agradar alguém no mundo e produzir um parco desejo nesse outrem. Sempre coloquei minhas aspirações primeiro, sendo elas altas, nobres e lúcidas ou inúteis, apenas para comprovar que só eu me governo e nenhuma infl...

Carta de amor descabelada #60

Escrevo essas linhas iniciais, sem saber o que te dizer, depois de tanto tempo, o que sobrou de nosso amor? Eu cortei o último fio que nos unia, mas como dói! Sempre fui contido em expressar meus sentimentos por você, mesmo quando todos nos apontávamos como o casal mais belo. Sempre diziam: "Vocês dois ficam tão bem juntos!" ou hora outra apontavam pra gente na multidão e sacramentavam o nosso laço, éramos como vinho e cool jazz numa noite sem lua. Eu sempre carrancudo, ignorava os elogios e seguia satisfeito por dentro, mas sem uma palavra de carinho dita em voz alta na frente do espelho.  Como era refrescantes nossos banhos no verão, enquanto a água escorria por você até me molhar e expelir para o ralo o calor a queimar o forro do nosso pequeno banheiro. A água quente amaciava nosso corpo no inverno, depois deitávamos em nossa cama, pensando em tanto daquilo que a gente nunca iria ser. Éramos felizes e sabíamos. O vento gelado persegue minha nuca mesmo nas tardes mais qu...

Presente do indicativo

Fomos muitos, mas em que ponto deixamos de ser esses tantos para nos tornamos outros. Ou sempre os mesmos num círculo imaginário. Um acorde musical te guia para lembranças de um passado recente. Onde o ontem parecia melhor que o amanhã e assim por diante. Postes iluminados virados para o oeste, para o pôr-do-sol, para o que se passou. Os fins tornam-se objetos de valores mais altos que os começos. O fim carrega consigo o caminhar a contra ritmo em fatos já passados. Pelo menos conhece-se o inimigo. Mas e o agora? O caminho para onde o nariz aponta é tortuoso e vário. Pensar que não se pode ser aquela pessoa que tanto se sonhou pode significar a apoteose da consciência. Não poderei ser o homem que primeiro pisou em Marte. Ufa! A marcha às vezes é lenta como se sempre houvesse tempo e por vezes acelerada pelo pavor do nunca mais. As métricas estão em revolução e não há possibilidade de fazer tudo, mas tem tantas coisas e tantos que se queria ser... Quantas batalhas internas deve-se lutar...