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Leila #24

A guitarra de B.B. King gemia abafada pelos meus no terraço da casa do Jorge. O suor salgado caia de sua testa quando ele a encostava em meu queixo, a gente acompanhava o ritmo da música, num blues do amor, calmo e constante. Eu apertava as minhas unhas vermelhas em sua perna café-com-leite, mais café do que leite, enquanto ele apertava meu peito leite puro no seu. 
Seus olhos negros me devoravam, enquanto a guitarra elétrica persistia gemendo lá embaixo, na frente de jovens trocando salivas em línguas cruzadas e cigarros de maconha. A viagem dos pais de Jorge para a serra naquele fim de semana foi a deixa para armamos a festa da galera do cursinho e comemorar com mais uma festa a despedida de nossa turma. Jorge, era o líder de uma banda de rock e tocava guitarra, Max ficava com o baixo e o Goulart era o cara da bateria. Eu, cantava em algumas músicas no palco, enquanto eu não estava cantarolando as mesmas na cadeira velha da garagem. 
Amávamos os Beatles e os Rolling Stones e de vez em quando íamos a festivais pequenos da região, a escola era sempre um pretexto para nos reunirmos e cantar, dançar e de vez em quando beijar  garotos e algumas garotas.
No último ensaio, Jorge me convidou para escutar o disco branco dos Beatles na vitrola do seu quarto. Eu sabia que era uma armadilha e queria cair nela.
- Maria Luíza, casa comigo? - Ele me disse após o primeiro beijo com os olhos gigantes de criança que pede só mais um chocolate.
Começamos a namorar há algumas semanas antes dessa festa que rolou no finzinho de novembro. Quando descemos para a sala, o relógio de pêndulo que ficava acima da adega ainda marcava o ponteiro torto entre o 8 e 9, mas estava mais para o primeiro. 
A cada momento entrava mais algum amigo de Jorge e a casa cada vez diminuía. Num momento chegou uma moça que sumiu entre as sombras de corpos alcoolizados e não pude ver o rosto, só vi uma flor amarela no cabelo junto com um  rapaz alguns anos mais velho que Jorge, um pouco bêbado o apresentou como o "melhor guitarrista que eu já conheci. O cara é um deus das cordas". Patrick, abriu um sorriso que olhava para mim e o manteve, eu segurei o olhar, mas desviei para pegar um pouco de vodca na cozinha quando Jorge ficou de mostrar sua nova guitarra para o primo.
Encostada na pia, conversava minhas amigas, Marina e Carla, e deram um sorrisinho quando me viram chegar. Marina disse que iria ao banheiro e Carla puxou conversa:
- Quem é aquele cara, que seu primo estava te apresentando, Maria Luíza?
Não percebi que o sorriso guardava um montão de segundas e terceiras intenções:
- Ah, é o Patrick, primo de Jorge que mora no Rio. Veio passar alguns dias de suas férias aqui. Está interessada? - provoquei.
- Por que não estaria? Ainda mais com aqueles óculos escuros, nunca dá para saber onde ele está olhando.
- O Caio não está aqui?
- Beijar arranca pedaço?  Ela retrucou com os dentes amarelos à mostra.
Com o copo de vodca e refrigerante de limão já entre os dedos , cansei de ouvir e dar respostas com ponto de interrogação no final e procurei um pouco de ar no sofá mais próximo. Encontrei um espaço vago nas escadas do terraço e tomei um pouco da vodca com refrigerante de limão. Estava forte, como eu gostava. Onde será que estaria Patrick e por que ele não parava de sorrir pra minha boca quando o vi pela primeira vez?
Senti um arrepio na nuca e uma voz rouca lambendo a parte de trás da minha orelha esquerda:
- A gente vai lá para varanda, vamos? O show já está para começar.
Jorge sorriu e sem esperar por minha resposta terminou de descer as escadas e puxar toda a gente que entupia para fora da casa. Coloquei os últimos gelos mesclados de limão e vodca na boca e fiquei observando o barulho de gritos e passos que começara a sair pela porta da sala. 
A força do silêncio não era absoluta ali, mas queria ficar um pouco tranquila, enquanto os meninos arrumavam o som para o show. Na mesinha branca encontrei um maço de cigarro no fim e uma caixinha com alguns fósforos dentro e outros escorregando para o piso. Levei o cigarro e o fósforo para a mureta, enquanto a noite sem lua me encarava. Fiquei alguns segundos com o cigarro na boca, mas sem acendê-lo, flertando com o fogo em minhas mãos.
 - Brincando com o fogo, Maria Luíza? - Era a voz do garoto de óculos escuros e camisa xadrez vermelha e branca.
Com o olhar ainda sob o céu negro, respondi como se não tivesse dado conta de quem fosse:
- Você já pensou para pensar quantas histórias contam as casas que nesse momento também estão sob o mesmo céu sem lua que a gente?
- Duvido que estão em melhor companhia que eu.
Virei o pescoço. Lá estava, os olhos verdes sem os óculos escuros. Na sua boca um sorriso de canto, que eu me esforçava para não encarar e suas mãos seguravam uma guitarra acústica amarelo palha molhada.
- O que veio fazer aqui? Aposto que não veio ver a cor do céu ou tentar adivinhar as histórias que as casas dessa rua guardam em segredo. - Foi o que saiu dos meus lábios que se abriram em seguida, que eu tentei fechar num átimo.
- Apesar da proposta tentadora, quis mostrar uma música para você que estou tentando aprender e descobri que você gosta de jazz e blues. Ele sentou no banco de madeira e me pediu para puxar uma cadeira da mesinha. Eu quis sentar no chão encostada na mureta com os joelhos no queixo. Então ele começou a tocar 'Lately' do George Benson, sem o piano, nem o saxofone para acompanhar, só os meus olhos que seguiam o ritmo de seus dedos enquanto seus olhos continuavam procurando os meus sem nunca encontrar.
A música tocou lenta e minha imaginação já sentia o perfume adocicado de hortelã que saia dos seus lábios. Quando terminou não percebi de imediato e ficamos, os dois, a nos olhar e imaginar tantas histórias que as casas nunca saberiam.
Aquela era só mais uma história de verão, eu sabia. Não estava atrás de príncipe encantado, queria o sabor do proibido. Pensei nas histórias que chegavam a meu ouvido sobre Jorge e Marina enquanto não percebia que cada vez mais Patrick se aproximava sem que eu fizesse esforço algum para que ele se afastasse.
Passos na escada. Ficamos em silêncio. Jorge olhou para mim. Patrick para Jorge. Eu olhei para o cabelo azul da garota que segurava a mão de Jorge.
- O que estão fazendo aqui? - Jorge perguntou com a voz entrecortada de como se tivesse pego a namorada em flagrante.
Meu medo passou para a raiva, mas controlei e respondi secamente:
- Patrick queria me mostrar uma música. Vamos descer ou vocês vão ficar aqui? - meu olhar estava cravado no de Jorge.
- Não, não... vamos descer todos. respondeu a garota de cabelo azul e puxou a fila, deixando por alguns segundos apenas nós três no terraço.
A festa lá embaixo corria e o show ainda não começara. Claro, Jorge queria mostrar seus ambientes para os convidados. Como ele era hospitaleiro!
Patrick seguiu Jorge para o corredor atrás da escada e me pediram para ir para fora. A cada vez que eu me aproximava da saída, as vozes dos dois soavam mais altas. Ouvi da voz de Patrick que estava apaixonado por mim, pouco antes de esbarrar num casal que estava entrando atrás de algum quarto vago para transar.
Sentei perto da piscina, tinha apenas mais uma cadeira a frente da minha com uma pessoa que não quis saber quem era. Levei a garrafa de vodca pela metade um pouco do que sobrou do refrigerante de limão sem gelo. Enquanto o líquido transparente meio amarelado chegava em meu estômago, a cabeça pensava mil coisas. No Jorge, que realmente estava me traindo como algumas amigas disseram, provavelmente elas estavam na cama dele na hora para ter tanta certeza. Vez ou outra desviava o olhar já brilhante para o céu opaco e vinha a imagem de Patrick. Porra, ele tinha que dizer que estava apaixonado por mim? Eu o achava atraente, e era isso. O som que saia de sua guitarra me deixava com vontade de beijar sua boca, sem ele dizer palavra alguma.
Percebi algum barulho vindo da cadeira da frente e abri os olhos, era a garota do início da festa com a flor amarela por entre os cachos de algum fruta que não sei o nome caindo de sua cabeça até os ombros que reluziam um cabelo cor de fogueira de São João que ficava ainda mais forte com a luz do poste atrás de sua nuca e o último gole da vodca. Levantei cambaleando e fui para o seu encontro, com os passos vacilantes e o copo dançando nas mãos, ela apenas fixou o olhar de âmbar para a frente, como se olhasse para alguém que estava logo atrás de mim. Deixou-se beijar quando enrolei meus braços no seu pescoço, enquanto deixava seus cotovelos rentes a costela. Afastei um pouco e fingi um pedido de desculpas:
- Nossa, mil desculpas. Não sei o que deu na minha cabeça...
Ela me puxou e deu um beijo, agora sim, agarrando a minha nuca e a apertando contra sua língua molhada. Disse que tinha que sair, pegar alguma bebida, ver seus amigos, ou qualquer outra desculpa que não lembro e fiz que acreditava. Não tinha problema, prometeu me encontrar no fim.
"E o Caio? Patrick?  pensei, mas minha cabeça estava girando e deixei-me cair no orvalho da grama, alguns passos soavam a minha volta, mas estava muto bêbada para querer dar conta do que eram ou o que faziam. Fiquei então olhando o céu escuro sem lua e esperando Leila voltar. Não sabia quanto tempo passou, mas ainda com a cabeça voltada do portão vi Leila voltando, mas ao invés de passar por mim, foi ao portão de mãos dadas com a garota de cabelo azul, fiquei de joelhos e com os olhos molhados, não sabia quanto tempo estava ali desde que ela se fora. Tocava Eric Clapton no fundo.

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