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Mostrando postagens de junho, 2019

E agora, Joana? #44

Um dia, desses de inverno em que não se tem nada a fazer encontrei as palavras rabiscadas com letra desengonçada e endereçadas à Joana, e começava os dizeres com o tratamento carinhoso de querida que se transformava nas linhas seguintes, em cruel, covarde, injusta, volta para mim joana pelo amor de deus, era a súplica da última linha. Olhei para os lados e com o caderno encapado verde aberto, procurei o remetente que poderia estar voltando para buscar as confissões que não queria lembrar e que ficara caída naquele banco do parque. Nada. Apenas um cão brigava com um tênis de um ciclista desavisado. Cada página daquele caderno tinha uma data de dia e mês e os pontos azuis que sobressaiam na outra página branca dava a impressão que tinha sido escritas aquelas palavras com a força do grito que não pudera dar. Algumas folhas apresentavam passagens calmas e racionais, como: Tive uma festa surpresa no trabalho, aprendi a nadar no parque da Cantareira, voltei assinar aquele clube do vinho q...

Para que serve a literatura? #43

O agricultor planta o trigo que depois vira pão e chega quentinho da padaria. O professor ensina a ler, escrever, contar e até a diferença de briófitas e pteridófitas. O médico o examina de longe e dá logo um atestado de virose. E assim segue, nas mais diversas profissões comuns que a gente vê no dia-a-dia. Diariamente precisamos de comer no café-da-manhã, fazer uma avaliação aqui e pegar um atestado ali, assim parece que racionalmente as profissões e seus produtos se conectam. Mas afinal, para que serve a literatura? Alguns dirão que é para distrair, naqueles dias em que a internet insiste em não funcionar no sítio longe dos amigos. Muitos dirão que não sabem e outros constataram que literatura serve como um facilitador para textos mais difíceis quando for mesmo à serio, ou seja, na universidade ou num emprego de escritório. Não serve para nada, pode escapar de bocas intelectualizadas. É possível viver sem literatura? Angustiante, mas essa sobrevida é possível. Há aqueles que s...

A mulher mais linda do mundo #42

Alexandre há muito não via Roberto, desde os momentos de ócio nos bancos e corredores da universidade. Um dia, perto das três e prestes a perder a oportunidade de fazer um depósito, Alexandre teve que conversar com o gerente para que o outro permitisse a transação. Apertando os dentes sem segurar o ar de enfado, viu o homem de camisa azul se aproximando e deu de cara com o velho amigo. Quanto tempo! Alexandre ficou feliz de ter encontrado o homem sério por trás daquele jovem angustiado. O amigo abriu um sorriso largo e o convidou para um café, ali mesmo, em sua sala, mas Alexandre tinha pressa por retornar ao escritório de advocacia onde era sócio majoritário e ainda tinha de fazer algumas ligações naquela mesma tarde. Os olhos de Roberto murcharam e, com um nó de arrependimento, o outro o chamou para umas doses de uísque em sua casa, já que era aniversário da esposa e ela não queria um jantar a dois e iria chamar outros amigos para a ocasião. O gerente do banco pareceu satisfeito...

O êxtase da primeira vez #41

Mesmo que o primeiro beijo, a primeira pedalada na bicicleta e o primeiro dente de leite que cai não produza as melhores sensações, há ainda os prazeres do ineditismo. Aos vinte anos e com a maior parte deles assistindo futebol, nunca tinha ido em um estádio ver o meu time. De certo modo, me acostumei com assistir aos jogos com a cara colada na TV e sem ninguém por perto, se possível. No meio do jogo, sozinho e em pé, pensava: “Caraca, deve ser legal estar no meio de toda aquela festa”. Eu ficava feliz ou triste, dependendo do resultado, mas parecia que a tela artificializava minhas emoções. Queria porque queria ir ao estádio. Morando em outro estado e sem carro ou alguém na família com a mesma paixão, ficava difícil. Mas, eis que chegou o dia. Um que conhecia um primo de um amigo de alguém que ia fazer uma caravana e ia para um jogo do campeonato brasileiro entre Corinthians e Palmeiras. “Tô dentro!” Tinha economizado cinco meses e ele me podia cobrar o triplo, eu aceitaria. Me sen...