O quadrado de papelão deslizou do plástico arranhado que cuidadosamente foi dobrado e depositado na estante. Uma placa circular preta começava a despontar da capa e a mulher a retirou com as pontas dos dedos e a colocou sobre uma caixa amarronzada. Quando a agulha riscou as primeiras linhas circulares houve um crepitar de lenhas secas e ouviu-se enfim o primeiro acorde daquele saxofone-tenor.
Com os olhos semicerrados ela caminhou alguns passos até a mesa de jantar e sentou-se na cadeira da ponta, completando uma taça oval pela metade com uma garrafa de vinho tinto que havia sido tirado de antemão da pequena adega da sala-de-estar. Aquele ritual lhe lembrara a juventude, bem antes de defender a dissertação sobre o trágico em Aristóteles. Sempre que colocava aquele disco de jazz sentia um torpor melancólico que a levava a abrir o diário e escrever sobre tudo o que sentia naquele estado de levitação espiritual.
Lembrou-se da universidade, de uma época de bons momentos em sua vida. Do primeiro namorado, quase bonito e que lhe apresentou e presenteou com esse disco de vinil. Das tantas vezes que os dois jovens adultos, se comportavam como um casal maduro, ele com um cigarro entre os dedos e ela com uma taça de vinho tinto pelo fim, simplesmente se olhavam e embalados pela profusão rítmica dos instrumentos, começavam a tirar a roupa com uma pressa motriz.
Uma frase que ele sempre dizia a ela como um mantra voltou aos seus pensamentos:
“A técnica e o conhecimento científico não importa, só o feeling está certo”.
Ela nunca conseguira aceitar aquela máxima em sua vida. Sempre gostava de planejar as mínimas situações. Desde o horário de lavar o cabelo antes da aula, até mesmo a hora exata em fechava os olhos antes de dormir. O curso de Letras foi concluído no exato mês que completou quatro anos e depois ingressou na pós-graduação em uma universidade maior e com um orientador que já trocava e-mails há meses. De vez em quando sentia que devia espairecer, então se planejava e fingia interação em alguma festa de faculdade ou em algum barzinho para compartilhar carinhos esporádicos. Em uma dessas ocasiões decidiu que era o momento de uma relação séria, que estava ficando velha, que as reclamações de familiares nas festas de família sobre um namorado a irritavam.
Então, em umas dessas saídas, ela encontrou um rapaz simpático e um pouco tolo. No início, ele achou graça e a elogiou pela dissertação de segundo suas palavras: “um assunto tão importante para a sociedade atual onde ninguém lê”. Ela sorriu, em parte para desviar a atenção do incômodo que sentia pela distância entre eles.
O disco girava e ela bebeu mais um gole macio do líquido frutado. Naquele momento a bateria batia lenta e pausadamente, produzindo segundos de silêncio como se a canção fosse acabar. Mas logo voltou o estrondoso solo multifônico do saxofone, embalado pelo piano e o grave do baixo. Ela sentiu a cabeça balançando na progressão rítmica dos acordes e imaginou levando o celular, o computador e os óculos e pegando o carro na garagem e acelerando pelas estradas até que o carro, sem mais combustível, parasse em uma estrada escura e distante. Sem destino, ela seguiria adiante e pararia em um hotel à beira da estrada para descansar e refazer os próximos passos. Por cima da colcha branca sem detalhes, anotaria no bloco de notas quanto tinha no banco e como arranjaria um novo emprego, agora sim de professora no primário ou simplesmente aceitaria trabalhos de revisão de textos de jovens universitários pretensiosos ou escritores medíocres até que encontrasse um bom emprego em uma editora. Pensou nos antigos amigos que poderia contactar para fazer de novo sua rede de conexões profissionais.
Lembrou-se do marido, do homem que era apenas tolo no início e não sabia discutir sobre música, mas que logo se transformou em um idiota que chegava todas as noites cheirando a uísque e sabonete de barra com a camisa amassada e o cabelo ainda despenteado. Não se importava em esconder mais por onde estava e se limitava a colocar um charuto entre os lábios enquanto ligava a televisão em algum canal de luta esportiva e resmungar de quando em quando para avisar a esposa que estava com fome. Maldito! Ela pensou refazendo todos os passos do futuro brilhante que perdera ao se tornar esposa de um gerente de banco parvo. Nunca viajaram para a Europa e se limitavam às festas de finais de ano a pegarem o carro e enfrentarem cerca de quatorze horas de viagem entre banheiros imundos de postos de gasolina e pães de queijo duros e amassados comprados no dia anterior em uma padaria qualquer para ir à casa de um tio do marido. Um velhote que morava no Mato Grosso em uma casa sufocada pelas linhas horizontais do latifúndio de soja.
“Não, ele não poderia simplesmente escapar com todo o dinheiro e com o álibi de ser um bom marido abandonado pela esposa louca”.
Tinha que pensar em algo mais efetivo e prático. Na despensa havia um pacote de um veneno azulado para ratos, talvez enquanto estivessem comendo espaguete ao pesto colocasse uma, quer dizer, duas colheres do pó granulado por entre a massa e ele perguntaria o que era aquele gosto diferente. Manjericão. Quando ele percebesse algo realmente ruim que estava lhe acontecendo, ela sentiria o gosto de vê-lo definhando sobre o próprio estômago com o sangue secando pouco a pouco.
A imagem do sangue seco agarrado em sua mão enquanto ela era conduzida a depor na DP começava a lhe atiçar os nervos e com os olhos fechados ela começou a pensar em outra solução, mais alva e que não marcasse na sua epiderme os signos daquele ato. Abriu os olhos e na gaveta abaixo da louça do casamento encontrou a solução.
Havia sido um objeto que ele tomou da herança do próprio pai, não era um presente que o velho lhe dera, pois na verdade nunca se importara com o primogênito.
Ela esticou a taça para o centro da mesa e apertou as mãos na madeira para se levantar e se dirigiu com avidez à gaveta como se de repente a arma sumisse junto a partir da idealização do plano. Abriu-a com cuidado e atrás de alguns papéis velhos retirou o pano que encobria o revólver de cabo marrom. Parecia tão pequeno pelo seu peso, mas viu seu reflexo pelo tambor que abriu e verificou que tinha duas balas. Não tinha como ter certeza se funcionaria, por isso voltou os papéis e o pano amarelo para dentro da gaveta e deixou a arma em cima da mesa com a mira apontada para a haste de vidro da taça.
Ele sempre chegava em casa e virava-se para novamente com a chave nas mãos para ter a certeza que ela estaria trancada ali. Era um bom momento, assim que ele ficasse com as costas do paletó cinza em direção a sala de jantar, ela não hesitaria e puxaria o gatilho uma vez e caso nada acontecesse ela teria ainda uma nova chance. Com a arma em punho apontando para a porta viu que seu plano não poderia dar certo. A porta ficava em um corredor mal iluminado e um tanto quanto distante da cadeira onde ela estava. O ideal era aguardar e quando ele se aproximasse da mesa com o mesmo hálito engordurado para lhe manchar a face direita ela acertasse um tiro na sua barriga enquanto os olhos arregalados dele não pudesse acreditar que ela sim tinha coragem, que não era uma covarde como ele sempre dizia toda vez que ela ameaçava ir embora de casa. Mas não queria sujar sua mão com aquele sangue e cravar entre os dedos os resquícios do chumbo queimado a tão curta distância.
Decidiu esperá-lo entrar no cômodo com um sorriso apático e perguntar com vigor para ele onde estava. O marido se irritaria e partiria com a voz elevada para cima dela, que com o rancor antigo e o impulso do momento o acertaria em cheio no peito antes que ele conseguisse dar dois passos em sua direção. Era isso, tinha a distância e a motivação perfeita, agora era só aguardar com paciência e altivez.
Então a maçaneta girou e a porta se entreabriu pela metade com a sombra de um vulto invadindo o seu campo de visão. Os passos confiantes se aproximavam da cozinha, era então chegado o momento. Com o braço apoiado na mesa para desviar os nervos que lhe pendulava as mãos, ela sentia o pulso bater com força sobre seu dedo indicador. Puxou o cão da arma e esperou com o dedo no gatilho.
O vulto se escondera nas sombras, por um instante não havia sinal de movimento na casa, como se tudo não passasse de uma história inventada às pressas. Ela então empurrou a mesa e quase correndo começou a avançar para a escuridão com os braços estendidos e a arma em punho. Cada vez que se aproximava da porta sua consciência lhe pregava outra peça, como se ele soubesse da história e agora a esperava para assassiná-la ou talvez a casa fora invadida por assaltantes que estavam lhe surrupiando as joias que herdara da avó materna. Talvez tudo fosse apenas fruto de uma imaginação obcecada e estivesse sozinha com os móveis calados e a casa tomada por um desespero pueril de uma criança que não sabe o que fazer.
O sapato batia ritmado no carpete e quando se virou num salto para a escuridão sentiu um golpe de encontro que levou a seu quadril a se espremer contra o tapete persa e o bloco de metal que segurava entre os dedos escapar e cair aos pés da estante de livros. Após alguns segundos de medo, ela sentiu as luzes se acenderem e uma voz grave rugir no topo de sua cabeça:
“Merda!”.
O marido segurava um copo largo e vazio tombado sobre sua camisa branca e ela com as pernas tortas e os braços levantados tinha na face uma careta de desprezo por si mesma. A música parou com um estrondo seco e depois só se ouvia o circular do disco sobre a agulha silenciosa.
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