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Anamnese aquática

 A água não é fria. Os primeiros movimentos carregam a ansiedade de chegar ao fim dos longuíssimos treze metros. Há alguns meses, não no mesmo cenário, a água gelada e espessa quase sorveu o último suspiro. Respira. Apertar a fivela de borracha na touca negra. Por mais tempo que demore, o impulso não furta de ser impaciente. Silêncio e o balançar de membros inferiores e superiores em uma direção reta. Três braçadas. Cabeça torta para o lado. Respira.Os movimentos apressados demonstram uma insegurança, mas o corpo bóia e avança. Três braçadas. Ou terá sido apenas duas? Boca aberta na busca de uma direção que seja a oposta da primeira. Os óculos estão embaçados, mas a água no azulejo azulado e as vozes de uma mãe avisam no exato momento que a mão toca a superfície sólida. Não foi tão ruim assim. 

Mergulho. Mais silêncio, um silêncio maior de como se tudo não existisse, apenas um som surdo que só é eliminado, antes do desespero tomar a conta e o medo de que talvez o corpo não volte por si mesmo à superfície a menos de dois metros da parede oposta. Não existe nada mais importante do que colocar a cabeça para fora da água. Óculos na testa e a busca da pedra. Novamente se vai por cima e se volta por baixo, sem nenhuma contestação. 

Anamnese. Em uma conversa entre amigos, uma professora ao descrever os procedimentos de uma prática xamânica, disparou a palavra, sem saber que de toda sua arguição, restou apenas essa mesma palavra, que naquele momento não se lembrava o significado. O percurso seguia em um ritmo monótono, sempre indo por cima e voltando por baixo. Até que a humanidade cansada de dominar a travessia por cima e por baixo da água, decidiu brincar com a gravidade e dar as costas para a água e foi então o que se fez. Com as pernas de cócoras na parede e as digitais riscando os filetes de pedra são tomé. Não há pressa.    Apesar de uma repassagem rápida dos movimentos, a caída na água é espaflhatosa, ou pelo menos assim parece, quando se enxerga os dois braços pendulando sobre a fronte e o líquido cegando os olhos e penetrando a pequena barreira de ar. As narinas queimam. Não olhe para frente, olhe para cima. Ao virar a cabeça se enxerga todo o teto alto de zinco, mas isso sempre dá a impressão de que não se sai do lugar. Não olhe para trás. Para cima. Parece um naufrágio, o braço puxa a água para cima do corpo e as orelhas tapadas incorporam sussuros, que parecem anunciar uma tensão que não se materializa. 

É necessário preencher um formulário com algumas informações para registro, perguntas simples que podem ser entregues na próxima semana. Uma ficha de anamnese. Qual a aparência da dor, quando não se tem dores aparentes?


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