Desde que tinha cinco ou seis anos peguei o chuveirinho e senti a água morna driblar as dobras de minhas pernas, senti que seria isso. Como num daqueles insights que temos nessa idade, quando andamos despreocupadamente ao lado de nossa mãe, sem saber que somos pequenos e num descuido olhamos para o céu atrás de um avião que passou baixo, pensamos: "Eu sou eu. Eu sou eu!" Não como um brado narcisista que indicaria que ninguém no mundo seria comparável a você, mas como um grito de consciência, uma a percepção que somos nós e não outra pessoa e que todas as outras pessoas, ou pelo menos a maioria delas, têm a consciência de que há muitas pessoas refletindo sobre a descoberta de suas consciências. Há uma infinidade de consciências ligadas ao pensamento, mais primário depois da fome e sede, que é o da reprodução por meio do sexo. Apesar de me interessar pela Biologia não vejo valor no fim em si, ou seja as necessidades fisiológicas e a condição natural do ser humano de proteção da espécie. O que convém é tratar dos meios (das pernas?) que chegamos a esse destino, nem sempre planejado é bem verdade.
Por isso uso sempre camisinha. Ou quase sempre. Até eu me formar em Direito no ano passado, saía eventualmente com outros garotos e, por vezes, não usava camisinha. Sentia a buceta sendo espremida por uma massa moldada pela minha vulva. Não me importava com IST's achava que isso só acontecia com pobre e favelado. E até agora não aconteceu comigo, apesar de eu ter saído com muito pobre e favelado, além deles também saio com o Iván mais regularmente, quer dizer saía, pois a gente se desentendeu. Do Iván eu cobrava apesar de gostar, e dos outros não cobrava e não sentia nada a não ser um pensamento reconfortante de fazer o que tinha de ser feito. Além disso, não precisaria cobrar nem do Iván, já que em horário comercial tem emprego fixo num escritório pequeno de advocacia trabalhista. Gosto de pensar que alguém paga para me comer.
O Iván gostava de falar de literatura, ficava sempre repetindo uma frase que não sei de qual livro é, mas que diz: "Ele não precisa de muito, mas precisa resolver uma ideia!", pra falar a verdade nem sei se essa é uma frase livro, parece de coach mas não falo isso pra ele, pois tenho certeza que no fundo ficaria magoado e perderia o clima da transa. O filho da puta é assim, cisma de transar e começa a falar umas palavras desconexas que no início parece um surto psicótico, mas depois releva-se como um poema mal-decorado do inglês elisabetano. Aí se você der corda, ele só vai querer comer o Franz Kafka. Você acredita nisso? Que um dia o desgraçado disse pra mim, nessa cama aqui ó, que se tivesse oportunidade de sentar numa mesa com os escritores que considera o suprassumo da literatura ele comeria quem tivesse lá, comeria o Dante, o Tchekhov, o Thomas Mann (apenas pela metade), a Virginia Woolf, a Simone de Beauvoir. Até aí tudo bem, mas agora comer aquela figura magra e triste do Kafka? Esse deve ter uma indiferença que no meio da foda, só se escuta o estampido ritmado da fáscia de Scarpa retumbando nas nádegas secas. Sartre ele disse que comeria até os olhos voltarem ao lugar, mas aí achei um desrespeito.
Gosto também de pipoca de microondas amanteigada, de ir passear com algumas amigas pela cidade, sentar na beira da praia para ver o pôr do sol, acho que é isso. Mas e aí, me conta mais sobre você?
"Manda mais uma garrafa de vodca. Duas!". Ele ressaltou antes de bater o gancho do telefone e olhar para a garota seminua refletida no espelho do teto .
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