Um revisor, casado, de quarenta anos, bem-escanhoado, pai de uma filha bonita e de um garoto magro e com olhos de bobo decidiu escrever um livro de cem, cento e cinquenta páginas depois do expediente para preencher um vazio existencial.
No início, gastou alguns meses pensando em enredos, personagens e num desfecho impactante. Ficava sempre sentado em uma cadeira de madeira na mesa da cozinha. Depois de uns tempos, parou de falar com a mulher. Chegava do trabalho passando as pernas sobre a cabeça e sentava a madrugada inteira com um laptop velho que pegara da filha mais velha, além é claro de folhas e canetas de variadas cores para a construção da narrativa.
A mulher reclamou, a filha acompanhou a mãe e o garoto olhou, mas o pai permanecia fixado naquela tarefa. Depois, pensou que o que faltava era o tempo todo disponível e se demitiu do trabalho, parou de usar camisas e deixou a barba crescer à deus-dará.
Em sequência, a mulher se irritou e trocou a fechadura da porta do quarto. Dinheiro perdido. O homem só se movia até a pia para abrir a torneira e beber um pouco de água e olhar um pouco o céu, entre pensando alternativas para uma cena melhor ou quando tomava à duras penas o mingau de fubá ralo que sua filha tanto insistia. Primeiro, foi embora a mãe e o menino com olhos de bobo. Passado algum tempo a filha se casou e mudou com o marido para um apartamento que tinha uma cozinha bem planejada e ficou combinado que viria uma vez por semana e pagaria as contas da casa para o pai, que virou quinze dias e depois acabou se esquecendo como todos.
Antes que a luz fosse cortada, o velho imprimiu as páginas que escrevera e passou a redigir o livro à mão. Trocou os móveis deixados por cadernos e canetas e continuou em sua jornada. Um dia, sabe se lá quantos anos depois, acharam-no morto na cadeira com folhas manchadas de sangue de seu nariz. Quem o achou viu que havia uma dúzia de caixas empilhadas e mais uma fila de pilhas sobre a mesa. Só de títulos acharam mais de cem folhas escritas de cabo à rabo. Fora mais 2000 ou 3000 da narrativa. O menino que havia crescido e passara por coincidência pela casa antiga, sentiu tristeza por ver que o velho não havia concluído o livro e quem passasse por ali e reparasse bem, poderia ver um brilho crescer naqueles olhos de bobo.
Comentários
Postar um comentário