Nunca chorei pela morte de ninguém. No início acreditava que era pelo fato de que ninguém realmente importante pra mim morresse. Acompanhei alguns velórios e fui poucas vezes ao cemitério, mas as únicas vezes que me lembro de chorar nessas circunstâncias, fora por morte inventadas de parentes vivos que respiravam em cômodos vizinhos. Eu sempre tive mais medo da surpresa do que pela consumação do ato. Hoje descobri que minha mãe havia morrido. Quando recebi a notícia, fiquei mais surpreso do que triste. Nunca dividimos um mesmo teto, apesar de nos vermos quase diariamente por um bom tempo. Eu estava indo comemorar a vaga de professor substituto que um dos meus amigos dos tempos da faculdade conseguira em uma universidade de médio porte. Estava quase saindo de casa, minha namorada só ficou de escolher qual brinco utilizar na ocasião que combinava com seu vestido preto, se colocaria o par de bijuteria de pérolas ou o brinco de argolas. Eu tinha acabado de fumar um cigarro de filtro amarelo e pensava se tinha disposição para escovar mais uma vez os dentes ou simplesmente deixava que a saliva e os aperitivos e drinques fizesse o papel de eliminar o cheiro acre do tabaco de péssima qualidade da minha garganta. Nunca me acostumei com o gosto do cigarro, muito menos com o cheiro. Ainda mantinha o ar de novidade toda vez que acendia o canudo branco de papel e dava os primeiros tragos, de preferência na janela dos fundos. Minha namorada odiava o cheiro de cigarro, por isso só me sobrava um pequeno basculante do banheiro social. Nunca fumava no nosso quarto, nem nas janelas que davam para a rua, pois apesar da minha idade avançada sempre temia que me vissem fumando.
Estava abrindo e fechando o botão do colarinho da camisa social salmão que minha namorada me fez usar, ainda que eu preferisse utilizar uma camiseta lisa de alguma cor sóbria quando escutei grunhidos vindo do banheiro e um choro que vinha em minha direção. No início, pensei que o choro vinha do pequeno borro da maquiagem nas maçãs do rosto, que talvez agora minha namorada por um descuido havia atrapalhado a maquiagem perfeita para o encontro, mas quando ela me enlaçou os braços no pescoço e molhou meu peito entreaberto com os olhos, refleti que aquilo parecia muito estranho, já que ela se irritava facilmente quando algo não saia do jeito que queria mas nunca me abraçava daquela forma. Incrédulo, eu puxei gentilmente seu pescoço para fora do meu peito e segurei seu rosto pela ponta do queixo com as mãos. Ela, entre lágrimas, que produziam uma cena grotesca de filme independente de terror, tendo o rosto com riscos negros cada vez mais longos e grossos, conseguiu balbuciar algumas palavras que me fizeram descobrir do que se tratava. Minha mãe tinha acabado de morrer. Minha irmã mais nova fora quem a contactara também aos prantos, o que me leva a crer que passado o instante que o ouvido captou a mensagem e a mesma passou pelo córtex, deve ter sido difícil para qualquer um entender o que de fato estava acontecendo ali. Minha namorada tinha visto minha mãe apenas uma vez e de maneira muito rápida, quase casual, quando passávamos pela minha cidade natal em uma viagem de fim de ano rumo ao litoral e encontramos minha mãe saindo de um restaurante. Lembro que na época pensei que nosso percurso estava comprometido com aquela parada inesperada que poderia sugar algumas horas de descanso pela tarde, antes da queima de fogos na praia que minha namorada insistia em ver. A recepção de minha mãe não passou da cortesia, em fingir interesse na minha nova namorada e até em um pouco de sadismo ao dizer que aquela parecia com a outra, dando a entender que eu tinha tido inúmeras namoradas e o pior, levado todas elas para conhecer minha família em minha horrível e monótona cidade natal.
Peguei a no colo e a levei para o sofá, enxugando suas lágrimas com a ponta dos polegares. Talvez ainda desse para passarmos um pouco no bar onde os outros amigos àquela hora já deviam ter passado da fase da cerveja e estariam nas doses de tequila ouro em uma contagem regressiva idiota, pois a vaga de professor substituto que meu amigo da faculdade conseguira, só iria abrir em fevereiro e estávamos em fins de novembro. Eram cerca de três horas e meia de viagem até a minha cidade natal e disse a ela que se não importássemos com a vigília, poderíamos acompanhar nossos amigos até o fim da comemoração e de lá iríamos para a casa e beberíamos um café e então, poderíamos tranquilamente chegar na cidade antes das nove horas da manhã. Não tinha calibrado os pneus, o que poderia nos fazer perder pelo menos meia hora em um dos postos da rodovia, mas nada que atrapalhasse a cerimônia. Ela me olhou com os olhos longíquos e novamente me enlaçou nos braços, agora apoiando seu rosto no meu ombro esquerdo. Senti as lágrimas avançarem sob a camisa e molharem meu peito. De fato, se fossemos encontrar nossos amigos, eu não conseguiria ir com a camisa social salmão.
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