Pular para o conteúdo principal

O homem que amava os cafézinhos #69

Não lembro a primeira vez que gritei para o espanto da minha avó: abaixo a mamadeira e o leite com farinha láctea, eu quero café preto e em uma xícara de louça! Só tenho certeza que não foi assim. 
Independente da forma, o ato de passar a beber café por conta própria foi um rito de passagem. Não sei bem a idade, mas lembro de criança ver à mesa da cozinha, meus tios, minha mãe, minha avó bebendo café sempre de manhã e pela tarde. Hum, aquilo tinha cor de coca, mas era servido quente e tinha um gosto meio forte. Mas, todos os momentos em que meu avô sentava na mesa da cozinha ou no sofá da sala ele estava tomando aquele líquido escuro com bolhas douradas. Sempre em uma caneca, sempre em todos os horários possíveis. Era tão diferente que havia uma garrafa térmica para ele e outra para os outros. 
Naquele tempo, eu achava que não podia (e talvez não mesmo) sentar na mesa quando ele estava conversando com os adultos. Então, enquanto ele sentava na ponta e tomava sua caneca, eu ficava zanzando pela cozinha com uma xícara de café nas mãos e imaginava também ser ele com sua camisa social com uns três botões abertos e também os vendedores, advogados, médicos, cobradores, devedores e políticos que se sentavam nas outras cadeiras, ou seja ser um adulto. 
Depois vi que o café me ajudava a permanecer acordado nas noites de quarta de futebol enquanto a novela das oito que ia mesmo até as dez horas. No outro dia também me ajudava a despertar pela noite mal dormida. Pra frente me ajudou a focar nas tarefas, exercícios, livros, artigos científicos e contra as ressacas. Ademais, eu adorava o fazer café, no circular lento da água do bule até molhar o pó espalhado pelo filtro. Depois, pegava o mesmo e ficava cheirando antes de beber e abrir a página  do EL País. O gosto era tão bom que de tempos em tempos eu aumentava a dose e estava sempre com a xícara nas mãos. Tava desanimado? Café para animar. Animado? Café para comemorar. Á toa? Café para passar o tempo. Ocupado? Café para ser mais produtivo. Enfim, toda hora era hora de mais um pouco da bebida.
Num dia acordei num sobressalto, não conseguia me concentrar em nada, os pensamentos iam e viam numa velocidade que me deixava zonzo. A barriga estava como uma bola, mordia os lábios, os ombros pesavam. No outro dia acordei do mesmo jeito e no outro, no outro, no outro. 
Por fim, decidi ir ao médico dos despossuídos e caminhei até a farmácia mais próxima. Lá, expliquei a situação temendo ser esse o problema. Me perguntou se eu comia direito, mediu minha pressão, furou meu dedo pra ver a glicose. Nada! Depois me perguntou de soslaio, como quem não quer nada: "E o café?" 
De todas as despedidas do ano talvez essa seja a mais difícil, até porque há sempre um cafézinho em qualquer hospital, igreja e oficina mecânica, mas é preciso. Sei que meus dentes e meu coração vão agradecer ao mesmo tempo que também tenho ciência que isso ainda vai me dar muita dor de cabeça. Hasta la vista, amigo!


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O ser e a estupidez

 Não consigo me reconhecer. Cumpro a cartilha às avessas de tudo aquilo que forjei ser meu domínio, minha índole. Lembro que até pouco tempo, lamentava profundamente ter de me relacionar com conversas banais e carinhos avulsos por algumas noites, para no outro dia, amargar uma ressaca de não resistir em relações da carne. Como a música, a literatura, o cinema, a teoria crítica não me bastava?  Meus relacionamentos mais duradouros sempre operaram na lógica de flerte e conquista, para desaguar em contato sexual apenas uma ou duas vezes por mês. Nesse meio tempo, mantinha um contato frio, era meu jeito, nunca consegui ser romântico e a humilhação pública do amor me nauseava. Não havia maiores sentimentos que passassem a figura do cômodo, de não ser um completo párea, de agradar alguém no mundo e produzir um parco desejo nesse outrem. Sempre coloquei minhas aspirações primeiro, sendo elas altas, nobres e lúcidas ou inúteis, apenas para comprovar que só eu me governo e nenhuma infl...

Carta de amor descabelada #60

Escrevo essas linhas iniciais, sem saber o que te dizer, depois de tanto tempo, o que sobrou de nosso amor? Eu cortei o último fio que nos unia, mas como dói! Sempre fui contido em expressar meus sentimentos por você, mesmo quando todos nos apontávamos como o casal mais belo. Sempre diziam: "Vocês dois ficam tão bem juntos!" ou hora outra apontavam pra gente na multidão e sacramentavam o nosso laço, éramos como vinho e cool jazz numa noite sem lua. Eu sempre carrancudo, ignorava os elogios e seguia satisfeito por dentro, mas sem uma palavra de carinho dita em voz alta na frente do espelho.  Como era refrescantes nossos banhos no verão, enquanto a água escorria por você até me molhar e expelir para o ralo o calor a queimar o forro do nosso pequeno banheiro. A água quente amaciava nosso corpo no inverno, depois deitávamos em nossa cama, pensando em tanto daquilo que a gente nunca iria ser. Éramos felizes e sabíamos. O vento gelado persegue minha nuca mesmo nas tardes mais qu...

Presente do indicativo

Fomos muitos, mas em que ponto deixamos de ser esses tantos para nos tornamos outros. Ou sempre os mesmos num círculo imaginário. Um acorde musical te guia para lembranças de um passado recente. Onde o ontem parecia melhor que o amanhã e assim por diante. Postes iluminados virados para o oeste, para o pôr-do-sol, para o que se passou. Os fins tornam-se objetos de valores mais altos que os começos. O fim carrega consigo o caminhar a contra ritmo em fatos já passados. Pelo menos conhece-se o inimigo. Mas e o agora? O caminho para onde o nariz aponta é tortuoso e vário. Pensar que não se pode ser aquela pessoa que tanto se sonhou pode significar a apoteose da consciência. Não poderei ser o homem que primeiro pisou em Marte. Ufa! A marcha às vezes é lenta como se sempre houvesse tempo e por vezes acelerada pelo pavor do nunca mais. As métricas estão em revolução e não há possibilidade de fazer tudo, mas tem tantas coisas e tantos que se queria ser... Quantas batalhas internas deve-se lutar...