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Feliz ano velho #70

As manhãs já não gostam mais de mim ou eu que tenha já não estado com ela por olhar a noite como um caminho que diminui o tamanho do dia e que talvez assim o tempo de pensar também se afaste. Não importa, estou recebendo um diploma, aplausos da banca, meus colegas me abraçam, o dono do bar me resolve dar um chopp de graça, a garçonete sorri com óculos cansados por trás da vista embaçada. 
Na ceia farta há doces, frutas e carnes com molhos vários. Cerveja, água com gás, vinho branco, rosé, tinto, seco, água sem gás, suco de laranja com acerola e abacaxi com hortelã, mas não há ninguém conhecido. Quer comer mais uma ameixa preta? Olha, essa tá grandona. Não, obrigado. Nada que um abrir de dentes para mostrar que tudo está bem, não importa como esteja de fato.
Ainda tô pensando no que vou fazer com um canudo, pra que vale tudo isso? Pra onde vamos com os paradigmas acadêmicos que tentam, lutam, se esforçam ao máximo para explicar o mundo, mas cospem sistemas vazios e palavras complexas? A arte também não resolve, do que adianta saber se eu li os gregos, ou não li, ou se eu nem soubesse o que era a Grécia? No fim do dia, tô juntando moedas para pagar uma qualquer coisa para comer como um metalúrgico que nunca entendeu uma frase escrita e a Thaís Gulin ainda não me deu um beijo.
Viajei, conheci, assisti e até cri, mas hoje não há pessoa que eu não inveje só por não ser eu. Insisto em colocar um nome alheio no meu e não o mudo, às vezes penso que o faço para dar a impressão de que estou falando de outro ou simplesmente porque é mais bonito, rentável e moderno. Pra que tudo isso? O presidente continua falando. Tratar do assunto seria redundância. Merda, prometi que não iria tratar sobre política nesse último texto, mas também tinha prometido não fingir que sabia algo sobre a universidade, a arte ou as mulheres. Mas olho pra cima e só vejo palavras iguais em todos os escritos que ainda bem que possui números diferentes porque tudo se dá pelo remoer de anagramas tão chatos.
Agora é tratar sobre os votos para o outro dia que é quinta-feira, ou sábado, que já foi até chamado de dia do Mercúrio, vê se pode? Tentar sempre achar que sabe mais que ontem é um vício tão nocivo quanto o álcool ou o Diazepam, mas todos tem os seus, não é mesmo?
Ouço tiros na rua, são fogos de artifícios. Alguém joga cidra na camisa branca que fui obrigado a vestir, enquanto há  vozes desconexas que gritam ao meu redor: Feliz, feliz, feliz!

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