Não sei, mas acredito que escrever é além do criar tratados, teses ou textos banais. É antes de tudo, observar, fugir da montanha-russa de afazeres por um instante e prestar atenção no voo desengonçado do besouro até vê-lo bater novamente em cheio na parede e virar com as pernas para o ar. É, numa conversa corriqueira do cotidiano, olhar para os lábios do outro e no rubro do canto direito da boca, tentar adivinhar o impossível. Será que ele comeu no café, geleia de morango ou de goiaba? Estou divagando, li por aí que não devo fantasiar. Porém, isso também faz parte do meu canto, por isso, não pude deixar de fora. Pela manhã, é o latido do cão da casa ao lado que me põe de pé, mesmo eu sempre praguejando contra sua vida, sei que vou sentir falta desse hábito um dia. É a chaleira que me encara quando ao passar pela cozinha como quem diz, você está atrasado! É, eu sei, hoje o cachorro não quis muita conversa logo cedo. Com a chaleira e a água do café no fogão, lentamente preparo o filtro e antes de colocar o café, respiro o aroma que me invade as narinas e me prepara para o dia. Vou ao quarto, janela aberta fico olhando o movimento dos carros e dos transeuntes, sempre apressados. Opa, deixei a chaleira no fogo, volto para desligar a água quente, com cuidado para não a deixar ferver. Dizem por aí que queima o café, melhor não arriscar. Levo uma xícara desse café para a escrivaninha, para ler um pouco sobre o que estão dizendo por aí nos jornais. Voraz, devoro colunas, editoriais e o que mais esteja em destaque. Sempre me frustro. O assunto é o mesmo, o deboche da política nacional. Fico ansioso. Resolvo ir para os esportes, mas lembro que é terça. Só quarta e domingo Tostão escreve. Vou então ler os textos da aula para esquecer. Leio sobre os anos de chumbo no Brasil, sobre um “milagre econômico” às custas de um aumento de repressão estatal violenta e em cima de um fosso da desigualdade social. Frustro-me novamente. Mas frustração também faz parte. Não só do belo e do sublime que a gente vive. É também sorrir sozinho ao ouvir uma música que fala sobre o herdeiro de uma pampa pobre e gostar de ouvir sobre algo ordinário.
Depois do almoço, o tédio é interminável. O sol já está de torrar os miolos, as costas grudam na cadeira, o cachorro agora volta a latir, para completar a tarde com a companhia do cacto que ainda resiste por entre os livros na escrivaninha. O sol vai baixando, mas não o espero se esconder por completo para ir para a universidade. Com um sol mais tímido me encaminho por entre as calçadas, sempre desviando dos conversadores entretidos que fecham a passagem. A aula é quase sempre interessante. Quer dizer, isso quando não estou encarando o meu relógio no pulso esquerdo, onde o ponteiro pende vagarosamente para o canto até completar o círculo e ter passado só mais um minuto. Já em casa, é hora de jogar a mochila na cama e ir para a cozinha novamente. Mesmo com uma noite quente, é hábito colocar novamente a água para esquentar. Sempre gosto de ler antes de dormir com a companhia de uma generosa xícara de chá de hortelã. Com a xícara e o livro entreaberto nas mãos, lembro de casa. Não dessa, mas da minha outra de onde eu ganhei o gosto pelo chá, quer dizer, gosto por chá de hortelã. Lembro do hortelã no quintal de casa e da minha avó ao sugerir toda manhã, se eu não gostaria de uma xícara do chá esverdeado. Sim, eu dizia sorrindo. Agora, me vejo da mesma forma, com os lábios puxados e pensando na Vó Clarice. Lembro de que faz alguns dias que nós não conversamos, e que às vezes sinto vontade de voltar para minha cidade cheia de ruas de pedra sabão e ir à praça da matriz para sentar no coreto. Voltar para a casa, para o meu canto... O sentimento é passageiro, porque sei que aqui também é meu canto, como amanhã será ainda outro. No olhar ao redor, a gente resgata todos esses lugares a nossa volta, onde entre chás de hortelã, cães danados e quiçá amanhã no barulho do giz riscando o quadro negro, reúne-se todos esses pedaços num só recanto, dissolve-as, e as remonta novamente no beijo do canto da face de hoje, que faz eu não conseguir livrar da dúvida de entender se o perfume que senti ao tocar em sua bochecha era o que ela havia comprado na loja chique do centro ou da flor lilás que descansava em sua orelha. Dúvidas ordinárias? Talvez, mas quem não as tem em seu ser?
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