É bonitinha, mas é só puxar algum assunto que foge às quatro linhas dos populares da Netflix e descemos para um sem fim de "hum, ah, quê? acho que já ouvi, não, vou ver, quem?, tá, já viu a nova temporada de Insatiable?" É bonitinha, e quando quer participar da conversa no bar com nossos outros amigos falando sobre o desemprego de 13 milhões, diz que aquilo é mentira, que seu pai viu no jornal e falou pra ela que o PIB subira 1,1% no último ano. Nossos amigos sorriem encabulados, eu, continuo a conversa pra temperatura quente da cerveja antes que alguém pergunte a ela da ação do PIB na economia e temo ela não saber nem o que significa a sigla.
É bonitinha e além disso tem um sorriso branco e uns lábios escarlates que me fazem esquecer que compartilha no Facebook sobre signos e terraplanismo e diz que as placas de papel coloridas na nossa estante estraga a decoração, que se aquilo não podia ser todos de uma cor ou pelo menos uma fileira de cada tom. Eu sorrio e abraço ela, preocupada, e digo que são livros de verdade e estão separados por assunto/autor e ela me promete que vai ler algum, "só espera passar as festas de fim de ano". Um dia, deitados olhando um para o outro, em um devaneio arrisco a chamar de: "Maga" e sugiro que ela também me chame de "Horácio Oliveira" e que juntos partamos para Paris, visitar os velhos museus e reclamar do maldito tempo da Cidade Luz! Desconfiada, ela me pergunta primeiro se estou saindo com outra mulher e eu tenho de jurar que não, que aquilo era apenas uma brincadeira. Depois, "Horácio Oliveira?", eu queria mudar de identidade porque? Eu tinha roubado um banco? Às quatro da manhã tenho que fuçar em todas as caixas de papelão amontoadas para achar o livro de Cortázar até que ela acredite que são personagens de uma anti-novela. O que é uma anti-novela? Amanhã tenho que levantar cedo, depois te explico amor.
Ela não sabe a diferença de Shakespeare para J.K. Rowling, mas jura que assistiu todos os filmes dos dois, porque filme é o que ela gosta. Num dia chuvoso de dezembro, caí na armadilha de sugerir que ia levar para ela a pentalogia do Truffaut. Quando mostrei o filme, ela ainda esperava que eu tirasse uma caixa de panetone composto por recheio e cobertura de chocolate e lá se foi eu e meu guarda-chuva quebrado atrás de uma loja da Kopenhagen aquela hora da noite.
Ela diz que não conhece Monet e acha que os quadros de Picasso são tão bonitinhos e queria saber se era eu quem tinha pintado no primário. Você estava estudando as formas geométricas, né? Chico Buarque ela olha sério e diz que ai ela conhece sim, tem até aquela música lá, aquela... "Você não entende nada". Abra o Youtube e pesquisa o Samba em prelúdio de Paulinho Nogueira. Amor, o que é prelúdio? Vou para o teatro e pergunto se ela prefere Brecht ou Stanislávski. Que apelidos você e seus amigos criam um para o outro, ela me responde virando os olhos. Platão, ah esse ela sabe, foi um planeta e até tem uma banda com nome, mas tudo isso só faz ela parecer mais bonitinha, principalmente quando baixa os olhos e aperta os dedos ansiando por estar certa. Ponto, o que importa é que é bonitinha e ainda sorri quando sussurra às amigas tomando cuidado para que eu não escute: "Ele não sabe trocar um chuveiro, coitado, mas até que é bonitinho".
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