"O mercado se racionaliza a cada época em função das demandas das sociedades modernas para capturar o consumidor e transformá-lo em mercadoria". O celular toca na mesa, o professor no centro me fulmina com para que eu desligue o aparelho, mas saio da sala pra ouvir a voz dela. "Você sabia que nesse momento um míssil teleguiado atinge uma mesquita em Damasco?" Agora não posso, me desculpe. A amazônia pega fogo e a terra gira com mais gás carbônico no Antropoceno, o juiz que cede um habeas corpus pro filho do deputado não é o mesmo que marca pênalti da falta fora da área. Eu sei, concordo também que os cachorros de rua merecem viver e que as fake news podem ser o mal dos novos tempos, mas agora preciso atendê-la.
O chuveiro queimou, o correio atrasou, o tênis furou, mas depois eu vejo tudo isso, agora não posso, ela está me chamando. O trânsito está parado nesse trecho e alguém me diz que a câmera do meu celular tira foto do meu rosto todos os dias, mas agora não posso mesmo te dar atenção.
Honk Kong está em chamas, o padreiro dormiu até mais tarde, o orientador mandou um e-mail sobre indisciplina em classe que eu não sou mais criança e outras coisas que eu não pude ler agora, o telefone está tocando e ela está do outro lado da linha. Pague a conta de água, de luz, a fatura do cartão, a Amazon Prime, fale com aquele, peça pra outro, tem alguém falando de você aqui no Facebook agora. Vê isso pra mim, agora preciso responder o toque do meu celular.
O dia acaba e a lua sempre cobre o sono. O telefone grita no silêncio. Abro os olhos pensando se não foi sonho. Mas o display ilumina novamente o pedido de sua ligação e vem uma voz do meu lado remexendo no lençol: "Desligue esse telefone e vem dormir, são duas da manhã!" Sento na cama e calço os chinelos, passo a mão nos olhos esperando o próximo toque. Levanto e vou a varanda, nova chamada. "Oi Vó, tudo bem? Benção. Pode falar agora, não, não, eu tava sem conseguir dormir aqui também".
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