São tempos sombrios... De uns tempos pra cá, comecei a sentir que essa frase fazia cada vez mais sentido, bem mais até de quando eu a ouvi pela primeira vez, numa daquelas quintas-feiras em que todos, exceto os que não o fazem, se amontoam em sofás e bares para ver a seleção canarinho em busca de um novo título mundial que traria uma brisa de tranquilidade para um país à deriva em uma mar de crises.
A vitória não veio. Pior! Veio uma derrota amarga e construída no início com um a zero logo aos 13 do primeiro tempo e que nossa seleção se mostrou cansada e desacreditada não conseguindo realizar sequer algum ataque bem-sucedido. Parecíamos um velho elefante de circo, que já sem forças para confrontar seu algoz, impacientemente esperava que tudo acabasse depressa. Porra! – Pulou do sofá meu avô gesticulando sem escrúpulos como um ítalo-brasileiro que não perdeu todos os hábitos de sua terra natal. Só minha avó não ficou satisfeita e correu ao encalço de seu companheiro que com seus gestos exagerados balançava a caneca para lá e para cá, fazendo com que o espumoso e dourado líquido amarelo mergulhasse no tapete encurralado pelos sofás de nossa pequena sala-de-estar.
Um sentimento de total incapacidade me deixou atônito, e do mesmo modo apenas procurei deixar pra lá como a maioria das minhas pessoas. Minha própria avó que enquanto retirava o tapete para leva-lo ao sol, reclamava:
- Vocês homens são tão bobos, ao invés de preocuparem com algo importante, passam o dia todo aí nesse sofá olhando para esta tela colorida, onde só tem um tanto de homem, correndo pra lá e pra cá atrás de uma bola. Lavar ao menos suas cuecas, ou passar uma vassoura na casa, isso vocês não fazem não!
Ainda continuou bravejando com meu avô na cozinha, porém minha atenção se concentrava agora em um luto, tão triste quanto a morte de qualquer ente querido, aquela derrota provocara uma ferida que custaria de fechar e traria consigo a lembranças de outras feridas não curadas nos corações brasileiros.
Novamente as flores começavam a cair. Exatamente há um ano daquela desastrosa derrota futebolística, outra derrota ainda mais cruel pairava no ar da nação. Era outra vez o outono que se iniciava coincidindo com meu ingresso na Universidade Brasileira Apartidária (UBA) da minha cidade, pois devido à padronização que há algum tempo atrás o ensino universitário sofreu, todas as universidades públicas passaram a um processo, determinado por um projeto encabeçado pela maioria dos congressistas, em que se discutia o modo tendencioso em que se discutia a ciência no momento, e a primeira reforma foi dar um padrão a todos universidades um nome que simbolizasse esse novo contexto, que até o momento se limitava à essa reformulação nominal, mas já havia boatos deque alguns professores foram presos por exporem suas opiniões, mas rapidamente essas notícias eram desmentidas, ou em casos mais graves, eliminadas pelo Estado.
Pelo menos eram isso, que informava aquela cartilha distribuída em diversos pontos da universidade pelos integrantes do GARE (Grupo de Ação Revolucionária Estudantil) que também estampavam com orgulho o logo que ocupava quase todo o vermelho de suas camisetas.
- Meu amigo Carlí! Esses vermelhos estão querendo nos levar novamente ao ócio, no semestre passado já interrompemos nosso curso, desse jeito só sairemos daqui uns cinco anos! Meu velho lá em casa, só tá esperando essa nova oportunidade para me encaixotar no porão de seu escritório, junto com aqueles milhares de papéis mofados e tendo como ajudante todas as traças do mundo! Preciso de um freela logo.
Não pude deixar de sorrir, diante de todo aquela exposição dramática:
- Quem o ouvir agora, pode pensar que logo estaremos em um novo estado de sítio, diante da “ameaça comunista”. – João não conteve sua risada já engatilhada há alguns minutos.
- Eu sei, mano. Mas foi um bom discurso, cairia muito bem na década de 60, não acha?
Eu apenas o chamei de idiota por aquela brincadeira de mau-gosto, mas logo depois aceitei um trago daquele café que já cativara minhas narinas e era um novo alento para aquele turbulento momento em minha existência social, política e principalmente acadêmica.
Me sentia totalmente estrangeiro a aquele universo em qual eu havia me submetido, para conseguir um bom emprego e uma vida estável? Não sei. O que eu sabia de certo é que na próxima segunda, com greve ou não, eu teria que enviar um artigo sobre o papel do Grupo Globo no último período totalitário no Brasil. Socialmente, também já estava enferrujado. Sim, com apenas 20 anos e já a 6 meses de faculdade eu tinha conseguido o recorde de festas de faculdade de número: 0, isso mesmo, zero! Para alguns esse tornou-se meu nickname: zero! Como mesmo meus colegas de classe conseguiam dormir às 4h da manhã e logo às 7h em ponto, repousar o relatório que eu estava quebrando a cabeça a duas noites na mesa do professor, contrariava ao menos a mim.
Saí dos meus pensamentos longínquos num sobressalto:
- Tenho que ir! Por um instante, me esqueci que haverá uma palestra do desembargador velho e carrancudo, mas que tinha muitos títulos do qual não quis saber e por isso, tenho que deixar sua agradável companhia Alberto. Até mais! – Disse ele levantando enquanto repousava a sua agenda num dos bolsos de fora de sua bolsa de couro marrom e sorria amarelo com seus dentes brilhantes.
Ainda me fez um aceno cordial, antes de me deixar ali parado na frenética cantina, evitando a todo custo ter que retirar o laptop de minha mochila, para entulhar aquele medíocre artigo com frases longas que nada diziam sobre o tema.
Nesse instante, fui surpreendido por uma mão que tocou o meu ombro e incendiou meu âmago diante daquele calor natural. Era Natália Sputnik, a garota a qual eu havia conhecido quase que por coincidência, em uma das paralisações que um colega de sala havia me obrigado a ir com ele, e me deixara por uma garota do movimento, plantado no meio da multidão com uma bandeira vermelha escrita: “ Nós somos a revolução”!, ao menos conheci Natália, que quase sem perceber me notou e abriu um cativante sorriso, que num lapso de instante tornou-se um aceno contido e depois consolidou-se com um vago aperto de mão.
Depois disso, ainda trocamos algumas palavras e ela me entregou um minúsculo papel onde continha uma sequência de números e saiu para o meio da multidão, me deixando totalmente perplexo e incendiado por uma chama de desejo. Agora, diferentemente daquele dia, em que uma curta blusa vermelha que chegava apenas ao umbigo, vestia agora uma camiseta preta que lhe cobria os shorts jeans rasgados, além dos louros que chegava no centro das costas e lhe dava um ar ainda mais sensual.
Da mesma forma que da última vez que nos vimos, ela me cumprimentou com um vago aperto de mãos, deixando as mostras por alguns segundos seus grandes e brancos dentes. Olhou para os lados, procurando algo que não identifiquei, e sem mirar em minha direção, disse:
- Perdeu meu número ou apenas não quis conversar com uma maluca que sem conhecer, lhe dá o telefone? - Enquanto acenava para a atendente da lanchonete.
Eu tentei dizer, mas não disse, as palavras vacilaram a sair na minha boca e só pude soltar alguns grunhidos, mas ela tinha se antecipado, apontou com o cigarro entre seus dedos pintados por um roxo descascado e eu a acompanhei.
Depois de uma tragada e um gole no café, fechou os olhos como se estivesse num carrossel em câmera lenta, ainda com os olhos fechados e com a fumaça se esgueirando por entre seus lábios, decretou:
- Preciso de ajuda para montar um jornal para o movimento. – Novamente foi ela quem disse, abrindo os olhos e transformando aquele olhar sereno, em olhos intimidadores.
Por um momento petrificado, não soube o que dizer. Já havia lido algumas edições do panfletário organizado pelos militantes de esquerda da faculdade, porém era muito amador. O conteúdo era totalmente tendencioso, como qualquer jornal, a diferença é que eles não tentavam disfarçar. Quanto aos textos eram muito enxutos do ponto de vista científico e totalmente mal articulados do ponto de vista jornalístico. A edição era semanal e a tiragem não passava de trinta exemplares. Enquanto esse filme ainda era exibido em meus devaneios, não percebera que estampava na cara todos os meus dentes, o que me colocava num dilema, ou eu aceitava o cargo, ou ela perceberia que sorrira olhando pros seus gigantes e sedutores olhes castanhos esverdeados.
- Isso só pode ser um sim! - Disse me surpreendendo com um abraço que me fez sentir o perfume natural que lhe saia dos poros e ainda, a mescla do forte odor de cafeína e tabaco contrastando com o frescor de menta, me deixando fora do ar por alguns instantes.
“Merda!” Foram as palavras de João quando lhe disse o que pretendia fazer. – Você não pode simplesmente apoiar uma causa que não é sua. – Ele disparou. Para ele eu só podia estar louco com aquele papo, lembrou-se que há até pouco tempo atrás sonhávamos com um trabalho numa grande corporação e até tirávamos sarros de todos a aqueles colegas que falavam de “fazer a revolução” ainda no ensino médio, mas só ficavam jogando cartas e falando besteiras no pátio, enquanto eu me perguntava porque eu deveria ficar ali discutindo sobre Gramsci, bolcheviques e Marighella nas aulas de História da Dona Ruth.
Disse a ele que os tempos mudaram e eu havia amadurecido e entendido que havia de existir uma revolução, pois a propriedade privada não era e nunca poderia ser para todos num sistema desses.
Porém, ele foi taxativo - Não posso me compactuar com alguém que pretende apoiar um regime que se for instalado levará a todos a uma miséria absoluta. – Proferiu entre dentes.
Não pude suportar a aquele comentário – Isso é medo de quem tem, ver por todos os lados, gente com os mesmos direitos que você. Foi o que consegui dizer, antes que fosse surpreendido por um forte impacto em minha face, que me levou ao chão e me deixou por ali ainda por um tempo, até que me recuperasse do golpe.
Sem demonstrar qualquer rancor e ainda atônito, me apoiei com dificuldade na escrivaninha para que eu conseguisse me recompor do impacto, abri a porta do quarto do João e em poucos instantes já ganhara novamente a calçada, ainda com as súplicas de Dona Marly que esperava entender o que aconteceu e clamava para que eu voltasse para que ela pudesse colocar um gelo em minhas bochechas roxas.
Andei por muito tempo sem perceber para onde ia, mas na verdade sempre soube o lugar onde iria dormir a aquela noite, o soco só foi um adicional que preferiria ter recusado naquele momento. Quando chamei naquele portão, um moreno alto com seus 30 anos e um cavanhaque comprido veio ao portão. Não sabia se aquilo era um mau presságio, porém resolvi a arriscar:
- A Natália está? – Eu disse. Veio a resposta seca:
- Quem é você? – O homem disse me analisando por entre as grades enferrujadas.
- Um amigo – foi o que na hora saiu por entre os lábios.
Por um momento o homem, ainda continuou me fitando e eu já sentia que a qualquer momento ele iria sair à rua e me arrastar para fora dali a pontapés. Quando eu já estava no maior limite da tensão, encarando a aquele que poderia ser meu segundo algoz da noite, surge por entre as sombras da garagem uma voz que retomou a tranquilidade do olhar.
- Entre Alberto! Temos muito trabalho para fazermos por essa noite para que nenhum operário fique sem sua cartilha da greve. – Disse sem mostrar nenhuma amistosidade ou agressividade, apenas indiferença. Depois disso o homem moreno se tranquilizou embora ainda continuasse me encarando pela retaguarda.
Aquela noite ainda permaneceu em meus pensamentos por muito tempo e sempre me fazia sorrir ao lembrar de toda euforia e depressão que a cada momento me invadia. Ao entrar para dentro do local, vi que havia diversas outras pessoas ali e diversos cômodos pequenos separado por um grande cômodo central que poderia servir de espécie cozinha pela geladeira situada em uma das extremidades e também de sala de estar por haver um grande sofá no centro, onde além das pessoas, havia um cheiro inconfundível de vodca que incendiava o lugar e me deixara um tanto enjoado num momento, misturado por aquela lâmpada multicor que girava no teto e vez ou outra iluminava alguns rostos e corpos que se roçavam entre si.
Fui passando por todos, guiado por Natália que mesmo na escuridão soube me levar para um ambiente iluminado apenas por um velho abajur, uma cama de solteiro de ferro e uma mesa de computador marrom completava a mobília do quarto, restando a nós um pequeno corredor entre a mesa que tinha um notebook e a cama. Ao lado da cama uma grande janela sem cortinas e com alguns vidros quebrados dava um aspecto de filme nonsense, que cabia muito bem nos acontecimentos daquela noite.
Natália tirou a mala de cima da cama e a colocou no chão no caminho da pequena porta e me convidou para sentarmos em cima do colchão. Coloquei as mãos no bolso à procura do pen drive que tinha o projeto da nova cartilha e fiquei por muito tempo com o coração agitado, será que me esquecera do dispositivo em casa ou simplesmente deixara cair ao me estirar no chão do quarto de João e pela vontade de sair dali, não passara pela minha cabeça se o pen drive havia caído ou não.
Encontrei-o no bolso de trás, prestes a escorregar para o lençol e quando Natália ia me perguntar se acontecera algo, alcei o dispositivo ao alto e disse:
- Aqui está o projeto que fiz. Temos que revisar, é claro! Mas acho que vai gostar. Ela estampou um sorriso enquanto abríamos o texto no computador que demorou ainda alguns longos instantes para abrir, mas no fim, deu a oportunidade de que lêssemos e discutíssemos sobre a cartilha. Ela gostou, sugeriu algumas pequenas mudanças, mas mirou um olhar e jogou seus louros para frente numa pose de comercial de xampu que me deixou novamente sem reação. É, naquele momento não consegui distinguir se estava ali por ela ou pela ideologia. Tanto faz, o que importa é que estava ali com ela e também estava contribuindo com a revolução e pela cartilha que começaríamos distribuindo às 6h, assim que fossemos à de uma amiga dela que possuía uma impressora e que iria imprimir e ajudar na distribuição para os operários na antiga rodoviária da cidade.
Ainda analisamos e discutimos sobre o tamanho dos textos e sobre a inserção ou não de frases de filósofos revolucionários que segundo Natália, deveriam possuir uma fonte mais chamativa. Não cedi tão facilmente, pois realmente pensava que iria poluir a cartilha e se fosse em outra hora, aquilo renderia a algumas horas de discussão e talvez uma crise entre nós. Porém era ela, a revolução ou a garota? Não sabia se havia distinção naquele momento, só sabia que a desejava. E apenas a fiquei observando, sem a insegurança de outrora, apenas na espera do momento que ela demonstrasse o menor sinal de interesse recíproco.
Depois de alguns minutos mais tarde, veio a oportunidade, quando toquei em sua mão e a entrelacei num abraço enquanto ficamos encostados em com as bochechas se tocando, até que depois ela assumiu o momento com um leve toque nos meus lábios, o sinal para que eu pudesse a tocar e a fiz quase se pensar quando a trouxe por cima de meu peito e a beijei por entre pescoços e coxas, sem mais o uso da razão.
Naquela noite ficamos por ali depois, ainda acordados e nus, meus olhos ainda fixos em uma pinta vermelha que ficava pouco acima do mamilo esquerdo e me hipnotizava, até que ela me desfez daquele sonho e quando eu fechei os olhos por segundos ela já não estava mais ali. Quando voltou já estava totalmente com a postura de outrora, implacável a emoções como me parecera da primeira vez, o que me fez me perguntar se aquilo realmente havia acontecido. A claridade que cobria meus olhos, anunciava a manhã de um novo dia.
Ela já começara a organizar a mochila que estava as folhas para a impressão e que levaríamos conosco para guardar as cartilhas ainda não entregues. Me sentindo um tanto envergonhado, continuei fingindo que estava dormindo e esperei que ela saísse do cômodo por um tempo para vestir a roupa e calçar meus tênis. Logo depois, saí a sua procura para a casa que ainda tinha o cheiro de vodca da noite anterior e novamente os sons de diversas vozes, começavam a preencher o lugar.
Em pouco tempo estávamos na calçada ainda silenciosa e pouco iluminada, procurando encontrar o local da casa da amiga de Natália que dizia morar em uma casa amarela na rua próximo a rodoviária, a questão é que só naquela rua, havia três casas amarelas com suas diferenças de tonalidade. Uma inclusive de frente a outra mais no começo e outra mais pro fim. Era mesmo a primeira que fomos, e quando chamamos na janela saiu uma mulher já bem mais velha com um chamativo vermelho nos lábios e nos convidou para entrar e tomar um pouco da bebida que já entrando no meu campo de olfato, lembrava-me que fazia no mínimo umas 12 horas que comera uma maçã antes de sair de minha casa no outro dia.
Então saímos para a entrega dos panfletos, não dando tempo nem para experimentarmos as torradas fresquinhas dispostas na mesa pela anfitriã. Mas mesmo assim me senti bem, por estar com a Natália e por ela demonstrar tanta devoção a luta por melhores condições de todos os operários, mulheres, mendigos e todos aqueles que eram deixados de lado pela sociedade. Além disso, no caminho conversámos sobre Marx, Trótski e até mesmo sobre Rosa Luxemburgo do qual eu particularmente conhecia nada. Tudo aquilo ia me dando uma sensação de felicidade de estar com uma pessoa que realmente lutava pelo povo, contrastando com o meu perfil de jovem ligado a futebol e a videogames, que achava que a revolução era rock n’ roll.
Chegamos na rodoviária e começamos a entregar todos aqueles panfletos sobre a greve, tentando convencer também através de conversas entrecortadas pelas buzinas e fala dos transeuntes, aos operários a aderirem a greve e se absterem de ir trabalhar. Mesmo conseguindo poucos adeptos, terminamos a manhã felizes por conseguir alguns, e mais outros tantos professores e alunos de várias escolas a se posicionarem frente às diversas corrupções do país, contrariando a ideia de povo alienado muito comum segundo os diversos grupos intelectuais da universidade. Não, ao menos ali, havia um povo que queria fazer a revolução.
Embriagado de todo esse clima de pré-revolução, e por goles cada vez maiores de vodca barata comprada na mesma rodoviária em que entregávamos os panfletos, alcançamos a rua da praça central sob um sol que não nos dava muitas alternativas de esquivar-se de sua luz. Desse modo, com as camisetas encharcadas pelo liquido salgado que escorria pelos poros e que vez ou outra encontrava os lábios, adentramos em meio a uma certa multidão dispersa em vários pontos da praça, reunidas e prontas a se organizarem com suas diversas bandeiras e sentimentos. Ali, encontramos alguns amigos de Natália e esperamos o relógio anunciar às 16h da tarde, hora que os militares já teriam revistado e prendido os manifestantes mais subversivos e outros tantos transeuntes por puro prazer.
Então prestes a começar a manifestação, vi que na outra extremidade da praça também havia reunido um grupo tão numeroso quanto o nosso e pelas roupas e dizeres nos cartazes, percebi que faziam parte de uma contrarrevolução de que provavelmente embebido por uma suposta traição acometida por mim, estaria João, meu amigo que não parecia tão amigável assim com aquele um porrete na mão e gritos ensandecidos. Aí percebi como as lembranças são suprimidas por divisões idiotas impostas na sociedade, que coloca na mesma cena um carrasco e condenado que por anos foram grandes amigos. É, a vida dos mais velhos têm lá suas esquesitices. Mas naquele momento, minhas memórias e reflexões foram interrompidas pelos empurrões e gritos de protesto que começavam a me levar para frente naquele sacolejar da multidão.
Em pouco tempo, os grupos passaram a se confrontar com gritos e gestos obscenos de ambos os lados e naquela hora, com porradas por todos os lados dos agressores uniformizados que espalhavam cassetadas e aquele gás insuportável em toda a multidão. Caos. Natália? Onde estará a Natália nos últimos cinco minutos? Ainda procurando fugir do centro de toda a confusão, percebia que a perdera entre a multidão de pessoas e devaneios. Mas, mesmo saindo por um tempo e sem ela, voltei ao cerne da briga e reivindiquei toda a aquela luta, a luta dos operários e de todos aqueles que não podiam participar e necessitavam de que eu estava ali. Aguentei firme todas as pancadas e me vi após algum tempo entre poucos sujeitos e nenhum daqueles que vira no outro dia, nem qualquer um que estampava a imagem de Che ou o rubro nos lábios ou no peito, esboçavam qualquer reação contra os espancamentos de seus amigos. O que vi foi eu e uns amigos de quem nem sabia que se engajavam nessas questões, ajudando a diversas pessoas caídas no chão no meio de toda aquela gente que corriam para longe de suas bandeiras e ideais tão reivindicados. Vi Natália, mas daquele jeito preferia que tivessem perfurado os meus olhos com lascas de palitos de dentes, do que a ver ao sorriso com os milicos, enquanto alguns operários que passavam por ali de volta de um mais um dia de trabalho, beijando o bico dos coturnos tão lustrosos. Natália ria, rodeada por outros que possuíam mais estrelas em sua camisa e mais ódio a todo o povo. Aquilo fora mais duro que o soco do meu amigo, me ajoelhei no chão com vontade de arrancar todos aqueles paralelepípedos e simplesmente lança-los ao espaço para que caíssem com mais força e estourassem todos os meus miolos. Ainda no chão, mas já acompanhado pelos policiais fui conduzido a um carro da patrulha próxima ao grupo que ainda permanecia a garota e ao que tudo parece, seus amigos. Mesmo encolhido no camburão, vi quando Natália entrou em dos carros importados de um dos coronéis, com um sorriso sereno, parecia que estava tomando sorvete num parque de diversões. E por entre o sacolejar do veículo e o piscar das sirenes, ficara ali a certeza de que eu nunca traíra a revolução, ela que me traíra, junto com a garota de olhos castanhos.
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