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Adeus, Marvin #48

Foi em uma sinistra e nublada noite de quarta-feira que vi, a poucos metros de onde me encontrava, a oportunidade que esperava há anos. Mesmo após tanto tempo do ocorrido, o sentimento adormecido incendiou meus olhos, ao ver a notícia de que o diabo agora estava tão próximo: mandá-lo ao inferno deveria ser minha missão, pois se não fosse, eu já não saberia mais o que seria. 
Me esgueirei pela porta do Le Petit, um finíssimo café pairisiense, procurando não ser notado para que assim o plano seguisse conforme o planejado. A casa estava cheia de diferentes personalidades da alta burguesia, e demorou alguns minutos para observar minha vítima, e mais algumas horas que pareciam eternas (além de outros tantos cafés que tomei) para que meu plano pudesse dar enfim seu primeiro passo.
 Allan acabava de sair do café com sua filha, Clarisse Lambert, e ambos caminhavam tranquilamente pela larga calçada quando foram surpreendidos por um jovem totalmente alucinado que, sem anunciar qualquer tipo de intensão maliciosa, apenas se jogou sobre o velho Conde Lambert, que perdeu o equilíbrio e caiu ao chão. A plateia, atônita, assistia a todo esse espetáculo, quando o agressor que já preparava para desferir um pesado golpe sobre sua vítima, foi surpreendido por uma pancada na nuca que o deixou atordoado por alguns instantes. Levantando após se recuperar do golpe inesperado, ainda cambaleante, o agressor sumiu por entre os transeuntes, da mesma forma que surgira. Allan já conseguia se levantar com a ajuda de sua bengala e das pessoas que presenciaram o ocorrido, dentre as quais pôde finalmente visualizar a silhueta de seu salvador.  Ele olhou na minha direção e disse:
“Muito obrigado, monsieur. Qual é seu nome?”.
Desviei um pouco o olhar, para não manter contato visual e, traindo-me, possivelmente colocar tudo a perder. Respondi em tom jovial:
“Guilherme Dumont, prazer em conhece-lo monsieur Lambert. Eu é que fico feliz de poder ajudar alguém tão bom”.
Ele replicou enquanto seu motorista particular o ajudava a subir em seu coche particular:
“Não seja modesto, monsieur Dumont! Amanhã farei um jantar com alguns amigos em meu lar, gostaria muito de convidá-lo, para que pudesse lhe agradecer com mais calma tudo o que fez”. 
Eu agradeci com um aceno e nesse instante cruzamos o olhar como um relâmpago: ainda meio sem graça, respondi que apreciaria muito um jantar em sua companhia, e ele, com um sorriso, ainda me deu um último agradecimento antes de partir e me deixar absorto em meus próprios pensamentos.
Meu plano houvera saído melhor que a encomenda! Após sair daquela multidão, pensei somente em voltar pra casa, pois precisava de algumas horas de sono para que, na manhã seguinte, pudesse colocar minhas novas ideias em prática. Quase chegado à casa – em uma rua escura e deserta – o jovem que atacara o Conde me interceptara, exigindo sua recompensa e alegando que agira conforme nosso combinado. Eu tinha que fazer algo, tentei adiar-lhe o pagamento dizendo que teria o dinheiro no dia seguinte, mas ele sacou uma faca e caminhou em minha direção com o objetivo de me forçar a reconsiderar o seu pagamento. Tomando uma decisão enérgica, o desarmei, e munido de uma corda de um piano velho senti seu corpo tremer e clamar por mais ar, sufocando-o até o silêncio profundo reinar por toda rua daquele subúrbio. 
Após avistar uma lata de lixo, o destino do meu fiel cúmplice foi selado: com alguma dificuldade e prudência para não ser flagrado coloquei-o em um grande caixão de madeira, velho e sujo, que havia na calçada. Após mais algumas olhadas para os lados, certificando-me que nenhum movimento meu fora notado, caminhei na direção oposta e, após uma volta tremenda que me rendeu um cansaço desnecessário, cheguei em meu minúsculo e imundo quarto de aluguel. Minha garganta estava completamente seca, então desci até a cozinha e voltei ao meu quarto com um cantil com um pouco de água. 
Me dirigi ao banheiro, e comecei a preparar meu banho que certamente seria, no máximo, morno, mas aquilo pouco importava: meu plano estava caminhando para o sucesso e era este o fato relevante. Arranquei aquele bigode postiço que tanto me incomodava e aquela peruca ruiva que parecia infestada por piolhos, me causando muita coceira, quase me fazendo colocar tudo a perder. Agora, pelo menos por um tempo, estava livre do disfarce importuno, e após o banho deitei em minha cama e por cerca de três quartos de hora ouvi o coro de gatos de minha vizinha – uma senhora cinquentenária, que perdera o marido há poucos meses e viera para em um desses nojentos quartos suburbanos de aluguel –, em um último e agudo pedido da noite por comida.
Então a escuridão total, depois um clarão e me vi numa igreja tenebrosa, onde gritos e sinos começaram a sufocar meus ouvidos, cada vez mais alto. Quanto mais eu corria, mais alto o barulho ficava – até que pude ouvir uma voz nítida de caráter feminino. Era a dona do meu quarto, que aos berros exigia o pagamento atrasado há dois meses. Levantei, ainda meio tonto, e girando a fechadura empurrei meus últimos trocados, batendo a porta em seguida.
 O fraco sol da manhã começara a se esgueirar pela janela, e eu não me sentia tão vivo desde antes do dia que marcou minha vida – o dia em que Allan me jogou na sarjeta, me roubando a empresa, a mulher e, principalmente, a dignidade, me obrigando a vagar pelos lugares mais sombrios de minha amada Paris, em busca de um pedação de pão qualquer para matar a fome. Em frente ao encardido espelho, pude observar melhor aquela marca que me veio cobrir os olhos, a cicatriz que eu havia recebido há tanto tempo e que marcava minha alma e meu corpo, despertando em minha memória a cena de um passado já muito distante, quando uma navalha deslizou sobre meu peito e cobriu toda a mão de meu carrasco de um vermelho escuro. Já eu, num ímpeto de adrenalina, pude desferir alguns socos sobre seu rosto, ele desabou, e então fui dar meu último golpe já sentindo o cheiro da morte no ar, mas várias mãos vindas do além me agarraram, impedindo-me de cumprir meu papel de ceifeiro. Olhando em volta, vi que havia muitos vindo em minha direção, e só me restou correr e me esconder como um cão covarde, fugindo do perigo. 
Agora o destino me presenteara com a chance de vingar-me, e essa oportunidade não permitiria falhas. Vesti-me como um produtor agrícola bem sucedido faria, e ensaiei mais uma vez, como tantas vezes já fizera, o discurso sobre minha família ser metade inglesa e que meu pai, em uma visita a negócios pela França, conheceu minha mãe, uma francesa do interior, casaram-se, e eu nasci e vivi toda a minha juventude na simpática região da Picardia, mas depois de administrar por algum tempo os negócios da família vim à cidade mais charmosa de toda a Europa ampliar meus conhecimentos em administração para passá-los ao meu filho. Achei que seria convincente. Pus-me então a olhar mais uma vez para meu relógio, totalmente impaciente para a chegada das 19 horas – hora marcada para o segundo ato do espetáculo começar.
Enfim, após tantos ensaios, alguns drinques e perdas no pôquer na bar próximo de onde eu residia, me encaminhei à chez Lambert , pois já estava atrasado e não era a hora de uma má impressão, ao menos não agora. Chegando à frente da casa pude identificar que havia outros convidados que estavam estacionados em frente ao palacete, e me dirigi ao portão. Notei que estava apenas encostado e subi as escadas que me levariam ao inferno: pude reparar como tudo ainda era exatamente igual e meio veio lembranças de quantas vezes eu e Allan jogamos, bebemos e conversamos naquela varanda, mas isso havia ficado no passado, e o presente era muito mais cruel.
Em frente à porta ajeitei o meu disfarce, apertei a campainha que tocou aquela melodia nostálgica da 9ª*. Após alguns segundos de espera, fui recebido na porta pelo mordomo de cabelos grisalhos que, após um cumprimento formal, me guiou até onde o Conde se encontrava com os demais convidados. Quando me viu, prontamente marchou em minha direção esboçando um sorriso que, por uma fração de segundo, me pareceu sarcástico, mas que no mesmo instante se transformou em uma apresentação amigável. Dirigindo-se aos seus amigos, disse:
 “Meus caros, este é monsieur Dumont, o homem no qual falava, o herói que me deu a oportunidade de realizar esse jantar com vocês.”  Depois me olhou e disse: ”Sinta-se em casa, meu amigo: tudo isso hoje é para você, como uma simples forma de agradecimento da minha parte”. 
Todos os dois homens levantaram e vieram me saudar com um cumprimento amigável, e eu em tom cortês repliquei, com um sorriso, ao Conde Lambert:
 “Por favor, me chame apenas de Guilherme, creio que a esta altura podemos dispensar a fina flor da etiqueta parisiense. É meu imenso prazer ter a honra do convite, mesmo achando que não fiz mais do que meu papel de cidadão... Agradeço à seu bom coração”.
 “Quanta modéstia monsieur Dum... Meu caro Guilherme. Devo a minha vida a você, e sou-lhe profundamente grato. Peço apenas que me devolva a cortesia e trate de me chamar de Allan”. Num murmúrio ronronante, acrescentou: “Entremos, companheiros, o jantar será servido em breve! Vamos tomar alguns drinques e conversar um pouco na sala de estar”
  Adentramos uma espécie de salão finamente decorado com uma pomposa mesa de mogno no centro e vários artefatos de luxo, como tapetes, esculturas, peças de porcelanas e, mais ao canto, uma adega para onde todos nos encaminhamos. Ali, pude reparar nos diferentes tipos de bebidas provenientes de variadas épocas e lugares. Entre algumas doses de uísque escocês contei a eles sobre minha história, ao que me perguntaram sobre meus passatempos, se os negócios continuavam lucrativos, e outras coisas irrelevantes. Contamos algumas histórias de infância, até parecíamos velhos amigos, talvez fosse pelo fato que houvéssemos sido mesmo. Por um curto espaço de tempo, minha mente mirou o passado de tantas histórias boas que vivi ali, mas agora o sentimento de vingança era a única coisa que restava... Quando voltei à tona, reparei que Lambert me encarava, analisando meu perfil como um lobo mira sua vítima, e por milésimos de segundos, nós nos encaramos, mas logo desviei o olhar, e ele ainda nos convidou para uma última dose antes do jantar. Antes que o fogo chegasse ao meu estomago, porém, ouvi passos às minhas costas, e a voz do mordomo veio em nossa direção:
 “Senhor, o jantar está servido. Os cavalheiros podem se dirigir à mesa quando quiserem”. 
O Conde pareceu satisfeito e dirigiu ao mordomo:
 “Obrigado Jean, caso precisemos de ti, lhe chamarei mais tarde”. 
O mordomo, com um aceno de reverência, se despediu com um “disponha”. Allan, com a cabeça, nos indicou para onde seguir e completou com bom humor:
“Caros amigos, queiram me acompanhar para apreciarmos nossa ceia particular não registrada por Da Vinci”. 
E entre gargalhadas, enfim chegamos à requintada sala de jantar onde um delicioso banquete nos aguardava: sentamo-nos os quatro à mesa e fomos servidos com uma entrada leve que consistia basicamente em uma salada de folhas nativas do sul da França. Ao centro da mesa estava o prato principal que rescendia o ambiente e insistia em fazer entrar pelos nossos narizes o apetitoso cheiro do frango com as ervas do típico Coq au Vin , que me fez lembrar do outro vazio carnal em mim. O mordomo nos serviu da forma mais farta que a etiqueta permitia, voltando de sua adega o Conde com um dos vinhos que recebera de presente de um amigo que produzia ótimos vinhos, nos disse:
“Guardei esse vinho para uma ocasião importante, e não vejo hora melhor para ele ser apreciado.”
Então o próprio Conde completou nossa taça com aquele precioso vinho, e continuamos a nossa refeição, sempre com comentários os mais banais. Tudo parecia estranho, Allan demonstrava uma tranquilidade que  me incomodava um pouco. Parecia que tudo corria como sua vontade, e após todos saciarem sua fome, o Conde nos convidou para tomar um ar na sacada de sua biblioteca particular. Contudo, o Sr. Blanche um dos senhores que nos acompanhava disse que precisava ir, pois já estava ficando tarde e no outro dia teria que ir para Verona em uma reunião com seu sócio. Aproveitando a oportunidade, Pierre, o outro convidado, disse que havia marcado de encontrar com sua esposa que estava na casa de amigos, agradecendo o jantar e marcando de nos encontrarmos novamente. Afinal eles nos deixaram a sós, e eu senti um misto de insegurança e ansiedade diante dos acontecimentos que se sucederiam...
“Acho que merecemos um último drinque, não acha?”, Allan me perguntou com um sorriso, quebrando o silêncio que agora reinava naquela antessala. Com meu aceno positivo, ele caminhou em direção à adega, e eu o acompanhei, com o coração cada vez mais ansioso: havia chegado à hora do último ato!
Com o copo na mão, propôs um brinde à nossa saúde e senti que ele já estava um pouco alterado, depois com um aceno de mão um tanto exagerado, disse subindo as escadas: 
“Venha, quero te mostrar toda a minha biblioteca, há muita coisa interessante para ser admirada lá”.
Sem tempo para escutar a minha resposta, ele adentrou na sala que ficava à esquerda da escada, e eu pude ver que o cômodo no qual entramos era bem mais espaçoso e havia diversos armários e artefatos de luxo espalhados por todo o ambiente. Então, enquanto subia, pude notar um armário um porrete próximo a um desses armários, abri rapidamente o armário, e munido do porrete subi as escadas, para então surpreender meu inimigo e destruí-lo.
Chegando à porta da sala, notei um silêncio que me incomodou, mas pensei comigo que o velho Allan, totalmente bêbado, havia de estar na sacada fumando um daqueles fedorentos charutos. Esgueirei-me, sorrateiramente, com apenas o estalar dos gravetos da lareira que rapidamente ia se reduzindo a pó, quando cheguei à porta da sacada e o vento frio veio bater em minha face... Senti uma voz grave às minhas costas que me fez paralisar como uma daquelas famosas estátuas:
“Estava me procurando, meu caro Guilherme? Ou deveria dizer... Marvin?”.
Então ele sabia! Quando girei meu corpo para encará-lo de frente, vi que o Conde não estava sozinho: em suas mãos, um punhal marroquino, que provavelmente havia saído de um daqueles grandes baús onde ficavam suas peças mais valiosas e raras, e agora mirava a meu peito, Ainda com o bastão na mão, foi a minha vez de falar:
“Então você descobriu meu disfarce, e me trouxe para uma emboscada? Genial... Devo admitir que as aulas de teatro não foram de todo inúteis! Conseguiu me convencer que era um porco bêbado...”
Ele sorriu, sarcástico, e enquanto passava a faca em seu queixo brincou:
“Ora, ora Marv... Minhas mãos tremem para sentir mais uma vez seu sangue correr por entre meus dedos, mas como sempre fui um cavalheiro digno, eu concordo em chamar a polícia e convocar a imprensa. Você daria um depoimento, retirando tudo o que disse contra mim, e assumiria toda a culpa. Essa, eu acredito, é a sua melhor opção...”.
Olhando para mim, viu que eu estava com o olhar vago, perdido no vazio. Com a voz tranquila. me disse: 
“Largue o bastão... Quando subimos avisei o Jean para chamar a polícia, provavelmente não demorarão a chegar... Não vamos dificultar o trabalho deles”.
Num ímpeto de adrenalina peguei-o de surpresa com um golpe nas mãos, que o fez cair, mas ainda com o punhal em mãos. Lambert se lançou em minha direção, e acertou em meu pulso esquerdo, o que que me fez largar o bastão e me fez uivar de dor. Jogando-se em cima de mim, nos atracamos pela sacada, ele agarrando meu braço e alargando a ferida em minha mão, me apagando pela dor aguda por alguns instantes. Quando recobrei a consciência, eu estava encostado na baixa mureta: ainda com o ódio no olhos, ele me disse antes de me empurrar:
“Chegou sua hora, meu caro... Adeus, Marvin.”
E então, voei ao infinito e tudo era silêncio... Pude então ver toda a escuridão do céu pintado com alguns pontinhos de estrelas brilhantes, e a cara de meu inimigo diminuindo até que senti o choque em cima daquele belo jardim. Levantei com o cheiro das flores e com o barulho de passos cada vez mais próximos que imaginei ser de policiais. Ainda atordoado, corri sem rumo passando por entre pessoas e charretes que encontrei pelo caminho, quando exausto, despenquei na calçada e apaguei novamente, cansado da corrida e esgotado pela dor.
Quando acordei, não sentia dor e nem mesmo lembrava do porquê estava ali.  Andei um pouco pela calçada me sentindo tão indiferente com o mundo à minha volta, com o casal que se beijava em um banco perto da praça onde estava, pelo jornal que encontrei pelo caminho e até o cheiro dos croissants , até então meu prato favorito... Tudo isso parecia não importar mais, nada mais importava!
Foi então que avistei uma grande propriedade à minha frente, e entrei por seus grandes portões de ferro. Vi que havia entre tantos pedaços de pedra uma em especial que atraía a atenção de algumas poucas pessoas, todas vestidas de preto... Um vestido com um estilo diferente se destacava do grupo, proferindo palavras que os outros ouviam e consentiam. Fui me aproximando cada vez mais, a fim de tentar entender o que era aquilo tudo...
Enfim, ao chegar perto o bastante pude reconhecer a bela cartola acima da cabeça de um homem que segurava também uma bengala com as iniciais A.L. e então reparei que conhecia todos que estavam ali. Havia mais ao canto do grupo uma de minhas tias, uma velha senhora que se mudara para Marselha há muitos anos desde que perdera seu marido para um infarto fulminante; estava ali também meu velho amigo de infância, Billy, que não via há muito tempo e parecia profundamente consternado: seu olhar mirava o chão e de seus olhos semicerrados saiu uma gota que deslizou até o meio da face, mas que uma luva negra logo tratou de secá-la. Mais ao meio estava a Sra. Johasson, a proprietária do quarto o qual eu alugava há meses, segurando um lenço próximo aos olhos enquanto proferia algumas lamentações. Novamente meu olhar voltou ao de Allan, que olhava para baixo – mas sua face não demonstrava nenhuma emoção. Como não entendesse o porquê de todos me ignorarem daquele jeito, e não suportando mais aquela cena no mínimo bizarra, bradei irritado:
“O que você faz aqui, seu porco imundo? Agora poderei me vingar e não há como escapar!”.
Contudo, nem Allan, nem os outros presentes moveram um centímetro sequer, alheios aos meus gritos enfurecidos. Como aquilo se tornava cada vez mais soturno, me dirigi à todos, já desesperado:
“E vocês o que todos vocês fazem aqui? Por que não me respondem?”
E a cada vez aquela situação tenebrosa me deixava perplexo e atemorizado. Segui rumo ao homem que, do centro do grupo, falava aos outros – não era ninguém menos que o velho Padre Frederick, aquele que foi amigo de minha mãe e sempre me trazia doces quando visitava a minha casa quando eu era criança! Ainda pude escutar as últimas palavras do que ele dizia:
“Irmãos! É hora de deixarmos nossas últimas condolências a alguém que, creio eu, está em um lugar melhor agora... Peço que deixemos nosso último adeus a ele”. E agora mirando um buraco aberto à sua frente, disse: “Vá em paz, amigo!”.
E algumas flores caíram em cima da grande pedra, enquanto eu observava, atônito, toda aquela cena perturbadora... E todos, em uníssono, disseram:
“Adeus, Marvin”.
Naquele momento, eu dirigi meu olhar ao buraco e com um choque pude me reconhecer com as mesmas roupas que ali estava e como em um pesadelo diversas vozes repetiam em minha mente aquela frase cada vez mais alto, e já não conseguia enxergar o mundo à minha volta, apenas alguns borrões acinzentados...Por fim, tudo silenciou e se dissipou em uma névoa negra, e junto a ela voei, partindo rumo à escuridão eterna.

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