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Vagabundo daqueles #40

 - Pare de escrever essas bobagens e vá procurar um trabalho de verdade!
Mário mantinha o olho para a fumaça que escorria para fora da panela de sopa e esboçava um sorriso silencioso onde se tivesse, esconderia o rancor pelas palavras que Elisa insistia em dizer todos os dias bem antes do marido alçar a colher de metal fuliginoso para atrás dos dentes. 
Era sempre essa a trilha sonora do jantar, desde que Mário fora demitido do seu cargo de bancário no mês passado quando, sem contar a esposa, passou uma semana preferindo frequentar pelas manhãs a livraria do Seu Aluízio ao invés de dar as caras no banco. A esposa só ficou sabendo porque o senhor Ribamar tinha ligado na sexta na hora do almoço, justo no fim de semana que Elisa não precisava ir à casa da Dona Mercedes fazer a faxina, porque a senhora tinha ido para a praia. Ouviu a voz grave do outro lado da linha e antes de responder chegou a ficar irritada por alguém ligar uma hora daquelas procurando saber de seu marido sem ao menos se identificar. Só quando ficou sabendo quem era e que o marido não apareceria no serviço desde a outra sexta, ela entendeu a situação e baixando a voz como se houvesse lembrado de algo importante, disse ao senhor Ribamar que o marido estava muito gripado e que tinha até ido ao hospital naquele dia, o médico de plantão tinha a alertado que podia até ser dengue. Com a ponta do celular na mesa de madeira da cozinha, ela fechou os olhos e ameaçou soltar um grito que não passou dos lábios. À noite, Mário chegou tranquilo para o jantar e na mesa Elisa começou a disparar tudo aquilo que queria ter dito, mas que fingia não notar, como que tinha sido um erro seu ter casado com um homem que não pode sustentar nem a si próprio. Era o começo de um ritual que acontecia quase todos os dias, salvo às noites de quinta e de domingo que Elisa ia aos cultos. Antes do jantar, Elisa disparava um monólogo de insultos à Mário que brincava com o talher na mão direita enquanto seu sorriso aéreo perdia entre as panelas no fogão.
O caldo da sopa escorria entre a garganta de Mário depois de ter passado sem pressa pela língua que hesitara sobre o sabor do legume dissolvido entre o sal e óleo da massa. Lembrou de quando era criança, sem saber se mais pra primavera ou pro outono, toda quinta era dia de sopa,  Marinho esfregava então a palma da mão entre os dedos melados de sabão e terra. Era seu prato preferido. Lembrou da mãe, mas enquanto olhava as rugas de Elisa se modificando ao som de cada palavra não ouvida daquele cinema-mudo, o senhor de 44 anos e meio, Mário Vadil, lembrou de uma apresentação da escola quando os pais interpretavam os borrões que seus filhos produziram sobre quais seus dons. A memória de criança é irmã do acontecimento, mas Mário se lembra que por entre o sorriso amarelo dos seus colegas, ouvir sua mãe dizer que acreditava que o desenho de um garotinho com os braços e a boca aberta, sentado frente a outros bonecos em pé, significava sua capacidade se expressar em público. Sem saber ela guiou à vida de Mário, que agora pensava porque ela não disse que era um vagabundo, daqueles, de nascença, no momento em que as mães contavam vantagens sobre suas crias, como “meu filho nasceu pra ser instrumentista”, “artes plásticas é o caminho para minha filha, olha como ela junta massinha de cores diferentes”, nessa hora, sem medo,  Mário pensou nas palavras que iriam ser ditas às outras mães “O meu nasceu pra vagabundagem”, essa deveria ter sido a verdade nua e crua e não estaria agora comendo um cozido à berros e sendo acusado de charlatão.
Mário  responde com algum resmungo afirmativo à Elisa Sonsa, que não consegue defender aquele golpe baixo e se cala. Ele abre os três botões que resistem em atar as duas partes de sua camisa e a chama para olhar a estrela por entre o vitror da cozinha. Ela descruza os braços e já não tem mais a fúria, apenas limpa uma gota de suor da testa e bufa um ar de que precisa dormir porque no outro dia tem de acordar cedo para visitar Dona Sylvia. Ele estende as mãos, ela aperta mas usando-a como impulsão para alcançar a porta do banheiro e em seguida as escovas de dente, enquanto o cão do vizinho começa a uivar e a luz deixa a cozinha amarela. 
Os uivos continuavam enquanto Mário pensava no restante dos manuscritos que ia entulhar sua velha maleta de couro marrom e levar para Seu Aluízio revisar, faltava o capítulo final, mas na sua cabeça a pergunta sobre qual temática seu livro tratava, era do amor, do amor que chega e fica e os dois personagens do seu livro que desde a infância viviam longe e perto de tempos e tempos acabariam por sair da velha cidade do interior, quando enfim conseguissem comprar uma casa à beira-mar e se divertirem à sombra de coqueiros, com os dedos afogados na areia e três crianças besuntadas de protetor solar espirrando água salgada para todo lado.
Elisa saiu mais cedo naquele dia e não voltara para despedir do sol, como acontecia todas às tardes. O ônibus 756 chegara e  desceu operários, donas de casa, estudantes secundaristas, o vizinho marceneiro foi o último e acenou para Mário e seus papéis. Quando a porta bufou como que impaciente e grudou a borracha se fechando, Mário olhou ainda para o lado e viu o bêbado que ocupava três dos quatros assentos do ponto, antes de repuxar a velha mala marrom à tiracolo e começar a desviar da poça d’água que ficava há duas quadras de sua casa. Chegando lá, silêncio escuro. Tateou a porta do banheiro, a do quarto, a da pequena casa de ferramentas, que não cabia mais que uma enxada enferrujada à procura de Elisa, mas não a encontrou. Com a luz da apagada cruzou com um livro plastificado aberto no meio da sala de estar. Tateou atrás da estante e um clarão incandescente atingiu o rosto de Mário com o braço enroscando com o de Elisa, os dois sorrindo e insinuando que despejariam a champanhe na boca do outro, ela toda de branco, ele de preto. Era o álbum de casamento que ficara pra trás. Acendeu todas as luzes da casa e na cozinha bem perto do fogão encontrou um bilhete amassado, “Não me procure, Mário. Quero tentar ser feliz.” Leu tantas vezes que o papel se esquentara com o amarelo da luz e com uma garrafa de aguardente pela metade, pensou ter lido na última vez antes de apagar: “Espero que encontre a metafísica, Mário. Quero ser feliz com o Esteves”.


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