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Chile, Buenos Aires #32

O tempo é relativo, tudo depende do ponto de vista do observador, como se diz na física. O espaço também muda também a noção de tempo. Mas, para tratar do tempo e do espaço é indispensável tratar ainda de um conceito de outro físico, o de atração. Atração pelo tempo e espaço da Chile. Para extrapolar de uma vez de todas a matéria de física, foi ali, onde eu embarquei num buraco negro dentro de outro, ou melhor, numa viagem dentro de outra viagem.
Quando o táxi andava, não queria que parasse, pois eram tantas e tão altas construções, luzes de diversas cores, palavras ditas rapidamente que eu nunca conseguia pescar o que era. Pensei, quero voltar. Mas, o carro parou e quando toquei a sola do sapato naquele chão de pedra sabão entrecortado por uma linha de bonde, me senti em casa. Olhei para o lado e vi a Mafalda quase sorrindo, me dizendo algo sobre a paz mundial que eu certamente concordaria, se eu não precisasse fazer logo o check-in. Entrei no prédio charmoso do hostel, cumprimentei a recepcionista venezuelana, que gentilmente fingiu que meu sotaque estava bom, um jovem olhou minha camisa da seleção e disse que era também brasileiro. Entrei no quarto, um espanhol me veio saudar e discutimos política entre Europa e América, Brasil e Espanha, acho que ele gostou mesmo de eu tratá-lo como ibérico. Me disse que achava o mais correto, mas ninguém conhecia a expressão. Esbarrei com uma jovem que mexia os olhos tão rápido quanto as pernas e me deu um aceno com a mesma pressa. Ali mesmo, encontramos outras pessoas e suas nacionalidades e muita pizza, cerveja e cigarro. 
Pela manhã, saia com ânsia por aquele ar. Não precisava, ali o tempo sempre atrasava. Cumprimentava a dona da banca que esperava que eu pedisse um jornal, mas nesse momento já estava dentro do La Continental. Olhava para o casal de jovens da mesa ao lado, o senhor empresário gordo e careca que se dedicava a área de mercado e cobria a cara com o jornal enquanto o café esfriava. Olhava para o lado e via a rua e seus chãos de pedra, sendo pisado por diversas pessoas que andavam depressa mas com a impressão de estarem apenas passeando. "Qué me recomiéndas?" era o que eu dizia para velha atendente que sorria, como quem diz: "Esses turistas são todos iguais". Lá, também o tempo ameaçava parar. Por fim, eu levantava da mesa e dirigia ao balcão, todos me olhavam espantado e a velha atendente vinha correndo como quem diz: "Era só chamar, que eu iria à mesa". Costumes.
Ali, na Chile, foi que eu encontrei de novo a moça de passos rápidos enquanto lia e eu tentava adivinhar a língua do livro. Parei e tentei puxar uma conversa em um inglês sujo, ela achou graça e me disse ser alemã com aquele sotaque carregadíssimo que me fez querer que ela nunca parasse de falar. Ela riu quando eu brinquei sobre futebol e eu me senti ótimo, ouvi por aí que os alemães são sérios. No outro dia me convidou para um show na Recoleta. Perdi a hora olhando os túmulos. A Rua Chile era o ponto de encontro comigo mesmo, dentre os sebos e os copos de cerveja, o jornal do dia do La Nacion e os protestos contra a feira tão charmosa que ficava aos pés da minha porta, eu me encontrava sendo outro.
O tempo é cruel com quem está atrasado. E os sorvetes de Palermo, os beijos roubados de uma Argentina na porta do cemitério da Recoleta, a excitação de conhecer o bairro da Boca e a paixão do futebol, os mais elegantes bairros de Puerto Madero e nem as caminhadas ao acaso por entre os transeuntes pelo centro, me fizeram esquecer o melhor lugar de Buenos Aires, que por ironia do destino, tem nome de Chile. O último encontro antes da partida, se deu com música e o olhar pelas tantas árvores que tapavam a vista do terraço as ruas e pessoas que ali passavam, enquanto riscava outro cigarro com o fósforo de Evita Péron, olhei de relance para Mafalda e com as mãos no joelho, pensei ter escutado de seu sorriso sereno que a Chile também havia gostado de mim.

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