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Angústia #14

Por alguns instantes fitei a mulher que saia aos prantos do bar vindo em minha direção, gesticulando e clamando por ajuda, mas por estar com fones de ouvido, continuei a olhando aproximar desesperada, com os olhos exageradamente arregalados e os cabelos esvoaçantes, contrastando com minha posição estática e o som de chuva calma nos meus ouvidos.  No momento em que apertei o "pause" já havia diversas pessoas correndo para o interior do bar e eu ainda sem saber, fui atrás da multidão mesmo com o risco de perder o ônibus que me levaria para casa.
Ao alcançar a porta, não deu para identificar do que se tratava nos primeiros instantes, pelo entra e sai de curiosos e clientes do estabelecimento e pelo alto volume das conversas. Me esgueirei por entre uma senhora de cabelos brancos e percebi o motivo de todo o alvoroço. Por entre os bancos que circundavam o balcão, jazia um homem de cerca de sessenta anos, gordo, grandalhão e vestido com uma camisa regata vermelha e uma bermuda marrom, além dos chinelos e os óculos escuros que permaneciam em sua face, mesmo com hasta esquerda quebrada. Perto dele, estava quem parecia ser o dono do bar com seu longo bigode e um cigarro na boca tentava sentir o pulso do morto, até que a ambulância chegasse. 
Atrás de mim, a mesma senhora de cabelos brancos comentava aos sussurros com um rapaz que também não estava ali na hora do ocorrido, quando o velho simplesmente caíra do banco, pouco depois de acender um cigarro e alguns instantes antes de beber a dose de conhaque que havia pedido.  Em frente ao local onde o senhor havia se sentado estava uma grande televisão passando um daqueles programas de concurso de danças, parece que era a final, pois todos estavam pulando em um palco enquanto se aproximava uma mulher com uma espécie de biquíni com um cheque de isopor de uns dois metros de 20 mil reais, provavelmente destinado ao casal vencedor. Ainda dentro do bar, naquele instante me vi pensando na insensibilidade televisiva de continuar fazendo suas palhaçadas enquanto ali do outro lado, há um corpo caído e a morte presente, ou outras desgraças alheias que ocorrem aos montes por aí. Todos ali, abrimos passagem para os paramédicos que chegaram e rapidamente colocaram o homem na maca e o embalaram no saco preto. Pela conversa entre eles, parecia que a causa da morte era um ataque cardíaco, mas não quiseram informar detalhes a todos e trocaram somente algumas palavras com a senhora que saíra em procura de ajuda, esposa do falecido que também encaminhara-se para o hospital com a ambulância, para recuperar-se do choque.
Quando consegui sair por entre todos os traseuntes para novamente estar à espera do ônibus, vi que o mesmo não se encontrava na plataforma indicada, olhei no relógio do meu celular. 19h12. sete minutos atrasado. Esperei no banco em frente a plataforma e resolvi esperar mais alguns minutos, até porque não havia outro ônibus para a mesma linha depois daquele. Nada. Olhei novamente para o meu celular e já se passara mais de dez minutos. Levantei-me respirando fundo, decidi ir ao guichê e perguntar ao funcionário, se havia previsão para o fim da espera. Havia apenas uma jovem à minha frente, foi o tempo de ouvir mais uma música e enfim, estava na frente do funcionário que estava mexendo em seu celular. Esperei ainda alguns segundos, mas o homem de não mais que 30 anos, bigode e gravata azul fina sobre uma camisa branca fingiu não perceber que havia alguém a sua frente, respirei fundo e disse:
- Boa noite, senhor. O funcionário voltou a vista para mim e me analisou por um instante, até que acenou timidamente e voltou a atenção para o celular que acabara de vibrar. - Por favor, eu gostaria de uma informação. A linha 7650 vai demorar? - Completei.
Novamente retornou o olhar para mim, aquele mesmo olhar caído e voltou novamente sua atenção para a tela que estava em sua mão, mas dessa vez disse com uma voz rouca: 
- Senhor, essa linha parou de passar nos finais de semana. Já faz duas semanas que entrou em vigor a alteração. Com a ponta do dedo manchada, provavelmente de um carimbo, apontou o cartaz que estava pregado no vidro que nos separava e que ainda estava pregado alguns outros avisos e um anúncio de "contrata-se cobrador sem experiência". 
Péssima notícia para um domingo à noite, estando do outro lado de sua casa e sem a quem recorrer para chegar em casa. Continuei parado ali alguns instantes, refletindo e praguejando sobre minha sorte, até que uma senhora com muitas sacolas, perguntou de modo apressado, se eu iria ou não comprar a passagem pois ela queria chegar em casa ainda aquela noite e outros tantos murmúrios que evitei escutar, pegando o corredor para sair do terminal.
Coloquei as mãos gélidas no bolso do moletom e comecei a caminhar apressado, para não tornar ainda mais longa minha caminhada. A rua já estava escura, com poucos postes de iluminação funcionando, mas não tinha outro jeito, o caminho era aquele. Depois de um tempo de caminhada ainda na avenida que saíra da rodoviária, já não notava o que me levava minhas pernas para a frente, mas simplesmente num ritmo automático ia me aproximando de casa. Quando enfim cheguei no fim da avenida, da qual deveria virar a esquerda e andar cerca de quatro quadras, alcancei um bar e decidir parar no estabelecimento por um tempo e sentir um pouco da euforia de assistir a um jogo no bar. Nunca fui a um estádio, por isso não posso descrever a sensação de ver os jogadores a poucos metros e sentir o canto das torcidas nos enlouquecer. Mas, há de se lamentar também quem nunca assistiu a um jogo no bar, os gritos se confundindo entre torcedores e rivais num mesmo ambiente, que transforma a TV num cinema mudo, pois não há aparelho eletrônico que grite mais que um torcedor apaixonado. Sentei em um dos bancos do balcão no lado esquerdo da parede onde a grande tela cobria a parte superior da parede e embaixo, abrigava diversas mesas e garrafas de cerveja.
O atendente jovem de cabelos castanhos que caiam até a altura do ombro, que no momento que sentei apertava o pano de prato, aflito por um escanteio contra seu time, perguntou o que eu queria. Apressadamente, pedi uma cerveja qualquer, pois mesmo depois de alcançada a maioridade há alguns dias, me sentia desconfortável com a possibilidade de ser confrontado e desacreditado sobre minha verdadeira idade ou pior, mostrar que eu já possuía a idade legal para consumir bebidas alcóolicas, mas aparentava uma idade inferior.
Peguei a cerveja e comecei a bebericar o liquido dourado aos poucos, na medida que o jogo ia fluindo. Por certos momentos, levantava-me do banco e proferia o "uuuuuh" a cada bola chutada sem direção para a linha de fundo ou mesmo quando o arremate era excessivamente medíocre e chicoteava no alambrado de proteção da torcida, aos que os torcedores se alvoroçavam com a expectativa de levar a bola pra casa. Mas, naquele momento por entre o sorriso fácil provocado pela bebi
da e os olhares para a jovem de cabelos castanhos na mesa próxima à porta, a realidade veio à tona. Num banco semelhante ao qual eu estava sentado, com uma bebida a frente e uma TV ligada, morrera um homem há pouco mais de uma hora, cena da qual presenciei. Nesse momento, divaguei por instantes sobre a linha tênue entre a vida e a morte, da qual pouco pararmos um tempo para pensar, sobre o valor da vida e do quão pouco eu parara para pensar em todos os outros momentos, como tudo era tão banal quanto um comercial de refrigerantes.
Fim do jogo. Paguei a cerveja e com as moedas ainda nas mãos, coloquei os pés novamente na calçada. Depois de alguns metros de caminhada, passei por uma rua que havia um beco e pelos barulhos de passos e gritos abafados, presumi que seria uma briga. Quando meus olhos puderam alcançar o local, vi que havia três jovens, mas pela pouca iluminação do poste, não pude identificar muitas características, além de que um rapaz moreno era agarrado por outro maior e mais forte de cabelos louros, enquanto um homem mais velho careca o espancava.  Ao perceber que estavam sendo observados, todos viravam sua atenção para onde eu estava e o jovem desviou o olhar para mim sem soltar do outro rapaz, mesmo que o jovem espancado não esboçasse qualquer reação para sair dali. Naquele momento, eu poderia tentar intervir, mas com o grande risco de ser espancado sem nem conhecer os envolvidos, ou, voltar algumas ruas no bar e tentar chamar alguma ajuda para apartar a confusão. Angústia. Angústia, no momento em que percebi que sempre devo fazer escolhas, estou condenado a elas. Angústia, também me acompanhou em todo o caminho a passos lentos para a casa, enquanto ainda ouvia por alguns metros o barulho de socos sob um corpo desfalecido, enquanto uma sirene soava ao longe, nunca soube se era de alguma viatura da polícia ou da ambulância para levar o corpo.

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