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O gol que matou meu avô #31

Silêncio! Era o que dizia a placa na parede branca ao lado da porta também branca do quarto 312. Era o primeiro domingo do mês de março, dia de visita ao meu avô no hospital. Já fazia alguns meses que eu ia vê-lo desde que teve que ser internado por um problema sério do coração. Desde então ele ficara no 312, em que cada dia um de seus filhos e netos passava uma tarde com ele, enquanto isso ele tinha a companhia de Anita, uma jovem pouco mais velha que eu que ficava de acompanhante pelo dia e Gilmar e seus bigodes, que em poucos minutos já estava babando na poltrona bege até que a manhã chegasse.
Eu gostava de ir aos domingos e levar chocolate e balas de caramelo escondidas nos bolsos. Quando eu chegava meu avô, ainda olhando para a janela balançava os braços para a Anita e dizia:
- É o Pedrinho, não é? - Sem esperar a resposta dela  com o pescoço buscando a porta mas o corpo ainda para o outro lado dizia com um sorriso:
- Pedrinho, é hoje que nosso timão ganha! Estou com esse pressentimento e sabe que eu nunca erro, hein? - Completava. 
Eu sorria enquanto a Anita mostrava o copinho branco com os dois comprimidos que vovô precisava tomar antes do café da tarde, ela sempre repetia aquilo como se toda vez fosse a primeira. 
Meu avô era diabético e cardíaco e eu sabia que aquilo era errado, comer doces e assistir futebol não era lá a atividade mais recomendada. Mas, o olhar do meu avô sempre brilhava quando eu mostrava as balas e o juiz apitava, era como se fosse a espera de cada semana por momentos que pudesse esquecer que estava ali, que era doente e que podia comer e falar besteira como qualquer pessoa.
Um dia, veio a pior notícia. A médica responsável pelo tratamento, proibiu que assistíssemos televisão em dias de jogo, pois o coração do meu avô ficava muito agitado em dias assim e não era bom pra sua saúde, devido a sua idade avançada e seu histórico de cardíaco. Foram exatamente essas palavras que ela disse para o meu pai e o meu tio, que acenaram com a cabeça concordando com a decisão prudente. Eu estava perto e balancei a cabeça negando, mas ela já tinha virado às costas e estava conversando com um enfermeiro com uma folha de formulário em sua mão.
As tardes de domingo perderam seu brilho, mas por fim meu avô era quem me consolava, mostrando que acharíamos outro jeito e no tempo de visita discutíamos as colunas do jornal e ele me contava quando ganhou um ingresso para ver o Santos de Pelé e no dia que viu Garrincha de pertinho quando voltava de ônibus do Rio que passou por coincidência em Botafogo. 
Mas naquele primeiro domingo de março era especial. Nosso time fazia muitos anos que não era campeão, eu nem lembrava a última vez. Meu avô preocupado em eu trocar de time, como fizeram seus filhos, sempre ressaltava a honra de torcer para aquele time de tantas glórias no passado. Eu o tranquilizava, a cada vez que aparecia com a camisa alvinegra e entusiasmado dizia a escalação titular e os gols da rodada passada. Naquele dia o nosso time iria jogar a final do estadual. Meu avô tinha ficado tão feliz na última vez que contei que íamos para a final, no começo da noite do domingo passado por telefone, que conversávamos por mais de meia hora, ele perguntando tudo, se teríamos desfalques, contra quem, como era o goleiro deles…
Era dia de clássico. E eu cheguei no hospital vinte minutos antes do que eu costumava. Anita ainda estava aplicando um remédio na veia do meu avô quando eu abri a porta. Ela arcou as sombrancelhas como de espanto, mas que logo se desfez em um sorriso amistoso que dirigiu com ela para a sala das enfermeiras, indicando a campainha ao lado da cama para qualquer coisa que eu precisasse.
Meu avô olhou de esguelho para o meu bolso levantado. E me disse:
- Quer matar seu avô com esse tanto de chocolate, menino? - arregalou os olhos e soltou uma gargalhada que emendou em uma pequena crise de tosse.
- Não vovô, hoje eu trouxe algo diferente que acho que vai gostar. - Eu disse ficando alguns segundos parado, enquanto os olhos dele buscava descobrir o que tinha por trás do pano. Quando mostrei a ele que era seu rádio de pilha vermelho, ele não acreditou e apertou sua cabeça contra o travesseiro e os lábios abriram as rugas à mostra.
Coloquei o rádio para funcionar e seus braços já começaram a balançar, mesmo eu alertando para não fazermos tanto barulho e chamar a atenção de Anita ou de outra enfermeira. Ele concordou com o dedo nos lábios e o sorriso sem dentadura. Ás 17h começou o jogo.
Nos primeiros minutos, parecia que toda hora algum dos times estava prestes a abrir o placar. Era do nosso time, Ademir que chutava uma bola que roçou a trave esquerda e do outro, Mazinho que na grande área entortou o pé no chute e a bola quicou na frente do goleiro antes de sair pela linha de fundo. A cada segundo do jogo, era uma hora lá fora. Entre chutes lá e rebotes de cá o primeiro tempo acabou. No intervalo, ficamos ouvindo os comentaristas e conversando com eles como se eles estivessem naquela poltrona bege.
Segundo tempo. O time deles começou a atacar  muito mais e dominou o jogo. Escanteio, falta, bola de fora da área, de cabeça, rasteiro no contrapé do goleiro. Ouvíamos o rádio com o amargo na boca de quem espera ouvir uma má notícia. Mas, no minuto 37, falta perto do escanteio esquerdo e a bola foi passando por todo mundo até Carlos entrar com bola e tudo para dentro do gol adversário. O narrador gritou:
- Caaaaaaarlos, é o nome dele. Uma jogada ensaiada, a bola driblou todos os zagueiros do time adversário até cair para o lateral direito que tem faro de gol e mandou um golaço, sem chances para o goleiro Ezequiel que ficou com as mãos abanando. 1 a 0. Esse gol foi um oferecimento de analgésico Bom! porque só quem é bom faz um gol de placa… 
Meu avô beijou a camisa e balançou as mãos para o teto, mas se controlou. O jogo ainda não tinha acabado. Os últimos dez minutos era como se fossem anos. Mas no fim, o gol do time deles não aconteceu e aí sim meu vô soltou um grito rouco, engasgado de muitos anos de campeão.  Naquele dormi com meu avô no hospital no lugar de Gilmar, ficamos conversando escondido até de madrugada sobre as jogadas, o lance do gol, a estrela de Carlos… 
No outro dia fui embora feliz e deixei meu avô dormindo com um sorriso sereno. Aquela era nossa despedida e eu não sabia. Na quarta de madrugada, papai me acordou com lágrimas nos olhos, vovô tinha morrido. Eu o abracei e fomos eu, ele, minha mãe e minha irmã para o hospital. Lá já estava meus tios e primos. No funeral, cheguei perto do caixão com o coração apertado, mas por dentre o véu e o terno que o cobria, vi o mesmo sorriso sereno em seus lábios e o coração dando pulinhos. Com a cara vermelha e a lágrima salgada que beijava minha boca, não pude deixar de sorrir. Meu avô tinha partido em paz, sabendo que seu time fora campeão depois de tanto tempo. Sorte que ele não estava vendo e nunca soube que aquele gol foi de canela.

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